Segunda-feira. Antônio acordou bem cedo e feliz. Finalmente chegara o dia de iniciar o seu estágio em uma repartição pública. Diga-se de passagem, estágio obrigatório para a sua formatura.
Fez a barba e colocou a sua melhor roupa. Caprichou no perfume. Deu um beijo na mãe e saiu correndo para não chegar atrasado no primeiro dia, ainda mais porque precisava pegar dois ônibus para chegar até a empresa.
Chegou com 45 minutos de antecedência. Não havia uma viva alma no lugar. Apenas um vigia que não podia deixa-lo entrar porque ela ainda não tinha crachá.
Aos poucos, os funcionários e estagiários foram chegando. Ele se dirigiu até a portaria para pegar algum tipo de identificação, mas como o time do RH só chegaria na parte da tarde, recebeu um crachá de visitante e em seguida foi levado até a sala do seu novo chefe.
O chefe o recebeu com entusiasmo. Disse que havia uma mesa e um computador esperando por ele. A tal mesa estava abarrotada de processos, e o chefe se sentou a seu lado para explicar quais os critérios para um processo ser aprovado.
“Parece fácil! Vou dar tudo de mim e terminar logo com isso tudo!”
Os outros funcionários do departamento não pareciam muito empolgados. Fumavam e bebiam café o dia inteiro. Volta e meia sentavam em suas mesas e por lá não ficavam mais do que 30 minutos. Tinha até gente fazendo unha em pleno escritório.
Acabou esquecendo de almoçar e terminou de verificar todos os processos que estavam em sua mesa. Viu alguns olhares atravessados em sua direção, mas não entendeu exatamente do que se tratava. Como já havia passado mais de 30 minutos do fim do horário do seu estágio, foi-se embora. Não antes de falar com o seu chefe, claro, mas foi informado que seu chefe já havia ido embora logo depois do almoço.
Nem os dois ônibus de volta o incomodaram. Comeu alguma coisa em uma birosca na frente da faculdade (era bolsista – passou em primeiro lugar na prova de seleção) e foi para a aula. Chegou em casa acabado, por volta das 23h00. Foi dormir feliz.
No dia seguinte, ao chegar ao escritório, foi chamado pelo seu chefe.
– Antônio, você está de parabéns! Em um dia só acabou com todos os processos que estavam na sua mesa! – Obrigado, chefe! Eu sou novo aqui e estou querendo mostrar o meu valor… – Eu entendo, Antônio, mas veja… As coisas aqui seguem um determinado ritmo. Não adianta a gente acelerar todos os processos aqui para eles ficarem em espera no próximo departamento para o qual irão, entende? – Mas se precisar, eu posso ajudar lá no outro departamento também! – Sim, claro, mas eles já tem um estagiário lá. Eu não posso permitir isso. Vamos fazer o seguinte, então… Não mais do que 10 processos por dia, ok? – Mas já há uns 20 em cima de minha mesa só de hoje… – Sim, mas vá com calma. De 10 em 10 todos os dias, ok?
Antônio saiu frustrado da sala de seu chefe. Em menos de uma hora e meia deu conta dos tais de processos e ficou sem ter o que fazer. Perguntou se algum dos seus colegas de trabalho precisavam de ajuda, mas nenhum deles aceitou a oferta.
E assim foi na quarta e na quinta-feira também. Até que na sexta-feira, ao chegar a sua mesa de trabalho e abrir sua gaveta, percebeu que havia um envelope com 500 Reais. Ele achou estranho, porque o RH havia pedido a sua conta corrente (que ele nem tinha antes de estagiar), e por isso foi falar com o chefe.
– Bom dia, chefe! Encontrei este envelope com 500 Reais na minha gaveta. O senhor sabe de quem é esse dinheiro? – É seu, Antônio! É seu. – Não é! Eu tenho certeza. – Antônio, deixa eu ser um pouco mais direto: para trabalhar aqui, este dinheiro precisa ser seu, entende? É a regra. Vale para todo mundo. Agora, vá fazer o seu trabalho.
Antônio saiu da sala do chefe cabisbaixo. Entendeu bem o recado: para trabalhar ali, ele precisava participar do esquema.
Pegou o envelope, o colocou de volta na sua gaveta, pegou suas coisas e foi embora. Ao passar pela portaria, deixou o seu crachá de visitante. Olhou para o prédio e pensou:
“Eu realmente era só um visitante.”
Chegando em casa, recebeu um abraço apertado do seu pai e da sua mãe. Muito humildes, choraram ao perceber que seus valores tinham seguido adiante na figura de seu filho. Seu pai disse:
“Estamos muito orgulhosos de você. Temos certeza que Deus também.”
Na semana seguinte, conseguiu um outro estágio. Hoje, é casado e tem dois filhos, e junto com sua esposa e passa adiante o que recebeu de berço, diretamente se seus pais.
– Mãe, preciso falar com você. – Já disse para você ir no médico de Uber! – Mas não seria melhor você ir comigo? – Por mim você nem iria! Essa coisa de Psiquiatra é invenção da sua tia! E deixa eu continuar a falar com sua avó!
“Vou tentar meu pai”
– Pai, eu queria que você fosse no médico comigo amanhã… – Eu estou em reunião! Agora não dá! – Mas pai… – Depois a gente conversa!
“Vou tentar minha irmã. É fácil saber que ela está em casa. O cheiro dessa coisa que ela fuma é insuportável!”
– Júlia, você pode ir no médico comigo amanhã? – Sai fora, fedelha! Tenho mais o que fazer! – Mas eu não quero ir no médico sozinha! – E desde quando eu sou sua mãe? Se enxerga!
Carla tinha 13 anos. Foi criada em uma família típica do século XXI. Pai e mãe ausentes, família dispersa. Grande parte do que aprendeu foi com os amigos. Alguns bem intencionados. Outros nem tanto. Gostava de animes e passava grande parte do seu tempo depois das aulas no WhatsApp. Era o que ela tinha para fazer.
Seus pais nunca cobraram dela nada relacionado a seus estudos. Nunca foram em uma apresentação ou evento na escola. O sonho dela era ser bailarina. Ninguém da família sabia que ela tinha esse sonho. Era como se ela não existisse.
No dia seguinte, ao entrar no Uber, o motorista ficou assustado.
– Seus pais sabem que você está aqui? – Foram eles que mandaram eu ir de Uber para o médico. – Você está doente? – Não sei… Não tenho dormido direito. Não sinto vontade de fazer nada. – É melhor ir ao médico mesmo…
E chegando no prédio do Psiquiatra, Carla não sabia qual era a sala. E como era bem baixinha, foi difícil para o porteiro atrás do balcão entender a pergunta dela. Ela era tímida. Falava para dentro e quando se via diante de algum conflito, se calava.
– Carteirinha do convênio e identidade, por favor. – Eu trouxe só minha identidade. Tá aqui. – Vai ser particular? – Não sei. Deixa eu perguntar para a minha mãe.
Ligou uma, duas, três vezes para a mãe e para o pai. Ninguém atendia suas ligações. Resolveu ligar para a tia, que pediu para falar com a atendente.
– Tudo certo. É só aguardar.
Carla ficou vendo TV enquanto esperava. Estava passando uma novela antiga. As pessoas olhavam para ela intrigadas. Afinal de contas, o que uma garotinha tão nova estava fazendo em um consultório de Psiquiatria desacompanhada?
Fez a consulta. A médica perguntou da vida dela em geral. Perguntou porque estava ali sozinha. Ela explicou que os pais trabalhavam muito. Na verdade, ela estava com vergonha de dizer que não tinha qualquer tipo de atenção ou suporte em casa.
A médica receitou dois remédios. Um deles era tarja preta. Entretanto, ela disse que só daria as receitas para algum dos seus responsáveis legais.
– Puta que pariu, Carla! Vou ter que passar aí para para pegar as receitas? Você só me dá trabalho!
O pai foi até o consultório para pegar as receitas e falou com a médica. Enquanto ela explicava a questão da Carla e falava sobre os medicamentos, o pai estava com a cabeça no encontro que teria com uma amante mais tarde. O pai da Carla tinha um amante. A mãe também. Eles não faziam questão alguma de esconder isso. Não se divorciavam apenas por questões financeiras.
– Tá vendo? Treze anos e já tomando remédio! E depois sou eu a filha problemática, né Carlinha? É por isso que eu fumo meu baseado. Fico zen e não tenho nenhuma neura.
– A sua tia adora se meter na sua vida e na vida da sua irmã. Diz que somos pais ausentes! Ela é louca! Na hora de segurar os BOs, desaparece. Bom… Tem comida em cima do fogão. Estou indo para a academia. Depois teu pai explica para você como tomar esses remédios.
Carla não ligou para o pai. Sabia que ele estava ocupado. Ligou para a farmácia e pediu os medicamentos. Teve que preencher um formulário azul e entregar a cópia de uma das receitas. Pagou com o cartão do pai. Ela sabia a senha. Aliás, ela podia comprar tudo que quisesse. Ninguém reclamava. Era como seu o dinheiro fosse infinito. Também sentia que era uma maneira de seus pais tentarem, de alguma forma, suprir as inúmeras ausências que marcaram a sua vida.
Foi procurar na Internet para que serviam os remédios. Deu de cara com termos tipo depressão, bipolaridade, transtorno de personalidade… Não entendeu muito, mas resolveu tomar os medicamentos de acordo com a orientação de médica.
Em pouco tempo, se sentiu sonolenta. Dormiu com a roupa que estava. Esqueceu de colocar o relógio para despertar para ir ao colégio.
Acordou bem disposta. Há tempos não acontecia dela dormir uma noite inteira. Era como se o remédio fosse milagroso. E mesmo sem falar com a médica, descobriu que um dos remédios era perfeito para ela esquecer da vida. Dormindo, ela esquecia de tudo. E passou a se automedicar. Encontrou, finalmente, uma maneira efetiva, rápida e fácil de lidar com seus problemas.
…
– Estamos aqui neste dia diante de Deus pai todo poderoso para sepultar o corpo de Carla…
Os amigos do colégio estavam inconformados. Não aceitavam a possibilidade da Carla ter tirado a própria vida. Muitos se culpavam e diziam que deveriam ter dado a ela mais atenção. Uma cena realmente muito triste.
A tia da Carla chegou aos prantos e não poupou xingamentos aos pais da menina. Tentou agredi-los fisicamente. Foi contida por outros parentes.
Os pais, cabisbaixos, disseram apenas “A gente não sabia que isso estava acontecendo”.
E foi a primeira vez que eles falaram a verdade desde que Carla nasceu.
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E se você chegou até aqui por estar com problemas, lembre-se que você é importante! Há muita gente que te ama mesmo que isso não esteja claro. Você é forte e Deus está a teu lado neste momento. Procure ajuda!
No Centro de Niterói/RJ, durante a década de 1970, meu avô saía de casa aflito todas as vezes que chovia e ventava muito forte. Ele saía com uma caixa de papelão nas mãos, e um dia me chamou para ir com ele (para o desespero da minha mãe, pois eu era muito novo).
Fomos em direção à casa que abrigava a prefeitura na época, que era completamente cercada por árvores enormes. Diante delas, vi meu avô se abaixando e recolhendo o que pareciam ser pequenos frutos das árvores. Não eram. Eram pequenos pardais desfalecidos por conta da tempestade.
Então, já com a caixa cheia dos pequenos pássaros, meu avô voltou para casa, cobriu a caixa com um cobertor e a colocou no forno, em temperatura bem baixa e com a porta aberta. Instantes depois, meu avô retirou a caixa do forno e eu comecei a ouvir inúmeros e intensos piados. Quando a chuva passou, meu avô retirou o cobertor de cima da caixa, bem perto da janela da cozinha, e dezenas de passarinhos fortes e aquecidos, voaram pela janela em direção ao infinito, em direção à vida.
Aprendi ali com meu avô, bem cedo, que mesmo sem que um pardal lembrasse do meu avô ou se mostrasse minimamente grato a ele, o prazer de ver os pardais voltarem a voar significava para ele absolutamente tudo. Ele praticava o bem e o bem era a sua própria recompensa. Era evidente nos seus olhos e no sorriso que esbanjava para si mesmo.
Que nossos corações e nossas atitudes sejam como a caixa, o cobertor e o forno do meu avô. E que possamos fazer o bem sem esperar nada de ninguém, na certeza de que ver o outro se levantar diante de uma dificuldade é um dos mais sublimes experiências que podemos ter na vida.
Saudades de ti, Afonso Fonseca, meu adorável e inesquecível avô. Obrigado por ter me ensinado tantas e tantas vezes o que verdadeiramente vale a pena na vida.
– Nada… Eu ainda estou no consultório – a voz dela demonstrava uma profunda irritação – Mas por quê?
– Eu ia te chamar para dar uma volta…
– Nem pensar! Tenho que terminar isso ainda hoje. Estou ficando irritada! Eu odeio o Excel!
– Acho que eu posso te ajudar com o Excel. Topa? – a pergunta dele foi sincera, extremamente sincera.
– E por que você faria isso? – ela perguntou risonha, mas ao mesmo tempo em tom desconfiado.
– Faz o seguinte… Fecha tudo aí e vai para casa. Eu peço alguma coisa para jantar e te ajudo com o Excel. Pode ser?
Apesar de ter concordado, na cabeça dela a oferta tinha sido minimamente estranha. Afinal de contas, não se conheciam há muito tempo. O único objetivo possível por detrás da oferta dela era uma noite de sexo e nada além disso. Decidiu pagar para ver. “Será que não fui clara quando disse que estava ocupada?”
Chegando em casa, ela tomou o seu banho, passou um perfume básico, e abriu seu notebook em cima da mesa. Uns 15 minutos depois, ele chegou.
Deu um abraço apertado nela e perguntou o que ela gostaria de comer. Decidiram pedir um hambúrguer artesanal com Coca Zero. Enquanto esperavam, ele se sentou ao lado dela e começou a perguntar da planilha.
– Então… O que você quer fazer?
– Eu quero fazer uns gráficos para um estudo que tenho que apresentar… Não estou conseguindo…
E começaram a trabalhar juntos na planilha. Ele parecia legitimamente interessado. Falou de recursos do Excel que ela nem conhecia e aos poucos os gráficos foram saindo.
Passados uns 40 minutos, o pedido do Uber Eats chegou. Ela começou a colocar a mesa e ele a interrompeu, dizendo que não era necessário e que eles tinham que comer rápido para terminar o trabalho.
– O que deu em você para vir aqui me ajudar? – ela perguntou casualmente antes de dar uma mordida no hambúrguer.
– Sei lá… Eu queria te ver – ela percebeu sinceridade nos olhos dele.
– Pensei que só fossemos nos ver nos bares da vida… – havia um certo tom de deboche na pergunta dela. Ela tinha a nítida sensação de que era apenas mais uma das aventuras dele.
– Que nada… Não dá para ir ao bar todos os dias e muito menos beber sempre – a voz dele era serena, segura, tranquila.
“Há algo acontecendo aqui e eu não estou me dando conta. O que ele quer, afinal?”, se perguntou.
Após o jantar, lá pelas tantas, terminaram a bendita planilha. Ele mostrou para ela que poderiam fazer algumas melhorias, mas ela disse que já estava bom o bastante, e que ele não precisava mais se preocupar.
– Bom… Você deve estar querendo ir dormir… É melhor eu ir embora… – ela já falou se levantando da cadeira.
– Senta! – a voz dela saiu firme, tal como uma ordem – Me explica o que está acontecendo!
– Nada… Eu só senti saudades… – os olhos dele olhavam fixamente para ela de maneira cândida.
– Você com saudades? Não estou acreditando… Quem é você, afinal? Pareceu tão confortável no bar…
– No bar é mais fácil, né? Sem compromisso, sem expectativas, sem promessas… – seus olhos miravam o chão.
A conexão com as palavras dele foi imediata. “Eu sei bem como é isso…”, pensou. Então, se levantou e foi para a cozinha. Fez um chá para os dois. Ela ligou a TV e pediu para ele ficar mais um pouco. Ele aceitou. Ela dormiu no seu ombro. Ele não queria acorda-la e permaneceu imóvel enquanto assistia uma reprise do último GP de F1.
De repente, meio que assustada, ela acordou.
– Você ainda está aqui? – perguntou incrédula.
– Sim… Eu não queria te acordar… Agora eu vou indo…
– Não! – novamente, a voz dela saiu firme, tal como uma ordem – Já está tarde… Dorme aqui… Amanhã você vai.
Ele balançou a cabeça e pediu para tomar um banho. Quando saiu, ela já estava dormindo. Se ajeitou ao lado dela como pode e dormiu profundamente.
Acordaram às 06h00 e tomaram um café da manhã rápido. Na saída, enquanto se despediam, ela perguntou:
– Nos vemos mais tarde?
Ele ficou surpreso. Meio sem graça, apenas sorriu e anuiu com a cabeça ao convite. Ela o segurou pela camisa, deu um beijo rápido na sua boca e disse:
– Eu quero conhecer mais deste cara que você esconde aí dentro. Vai me mostrar quem você realmente é?
– Eu topo! – disse ele sorrindo e de maneira bem mais relaxada. Era como se ela tivesse retirado um peso imenso de seus ombros.
E foram em direções opostas da cidade. Apesar de seus receios, ele sentia que havia chegado a hora de se abrir para o mundo novamente. Precisava tentar. Ela, por sua vez, ficou curiosa ao extremo por conta da dualidade que ele havia demostrado. “Quem seria ele, afinal?”
Passaram o dia pensando um no outro e torcendo para que a noite chegasse logo. Ainda havia muito para se descobrir, muito para se conversar. A vida precisava continuar.
Como de costume, sentou-se na mesa de seu bar favorito junto com seus amigos e olhou a seu redor para fazer uma espécie de reconhecimento de terreno. Bem a sua frente, uma duas ou três mesas depois, ele se deparou com uma mulher olhando fixamente em sua direção.
Seus olhos e seus cabelos compridos eram negros como uma noite sem lua e sem estrelas. Sua pele era branca como neve. Absurdamente bonita, tal como uma deusa nórdica. Parecia ter 30, 35 anos no máximo. Movia-se com delicadeza e classe. Falava com desenvoltura. Conversava com uma amiga, mas seus olhos estavam bem longe daquela conversa. Era algo tão contundente que era impossível de não ser notado. Os olhos dela o convidavam para chegar mais perto. Ele se sentia hipnotizado. Era praticamente impossível resistir, até porque ele não tinha intenção alguma de fugir daquela deliciosa e inesperada situação.
Era um bar cheio de pessoas bonitas e bem arrumadas, e justamente por isso ele resolveu fazer um “teste de sanidade” com um de seus amigos.
– Me faz um favor? Há uma mulher bem aqui na minha frente…
– Ela não para de olhar para você – respondeu o seu amigo, interrompendo-o.
Ele se deu conta, então, de que precisava fazer algo. Como ela estava acompanhada de uma amiga, sua aproximação tinha que ser estratégica. “Talvez quando a amiga dela for ao banheiro”, pensou. Sabia que não poderia vacilar ou hesitar. Precisava agir rapidamente. Era muito óbvio que os todos homens do bar haviam notado-a. Impossível não nota-la. Impossível.
E assim foi. Quando a amiga se levantou presumidamente para ir ao banheiro, ele imediatamente se levantou também. Sua missão era clara. Ele precisava se apresentar e entender o que estava acontecendo. Foi em direção à mesa e no momento em que iria falar com ela, a amiga retornou. “Esqueci meu celular!”, disse ela. Ele pensou em passar direto. Não deu tempo. Antes que ele pudesse desviar sua rota, a mulher o segurou pelo antebraço delicadamente e olhou bem no fundo de seus olhos.
– Não vai se apresentar? – o coração dele disparou. Por alguns instantes, sentiu como se tivesse esquecido o próprio nome.
– Seu nome é… – ela insistiu. E ele fez o que sabia fazer de melhor: sorriu de volta.
– Antes de eu dizer meu nome, me ajuda com uma coisa? É impressão minha ou você estava olhando na minha direção desde que cheguei aqui?
– Eu sei o seu nome. Não precisa me dizer – sua voz era doce e suave, talvez mais hipnótica ainda que seu olhar – E sim, eu estou olhando para você desde que chegou aqui. Você não se lembra de mim?
Ele reparou bem na fisionomia dela e não se lembrou de nada. “Como eu posso não me lembrar de uma mulher bonita como essa? Ela deve estar brincando comigo. Só pode!”
– Vou ser muito sincero… Eu não lembro. Tem certeza que sou eu? Não sou de me esquecer de uma fisionomia, ainda mais de uma mulher tão bonita quanto você…
– Eu entendo… Você estava acompanhado no dia – ela disse sorrindo.
– Que dia? – ele estava começando a ficar angustiado.
– Eu estava sentada em um bar com um amiga… Falando nisso, deixa eu te apresentar essa minha amiga.
A amiga dela estava voltando. Deu um oi meio sem graça e disse que estava indo embora. Chamou-a para ir embora com ela.
– Vou ficar – disse ela olhando fixamente nos olhos dele.
Elas se despediram e a conversa recomeçou.
– Eu estava sentada em um bar com uma amiga. Não era essa. Era outra. Isso faz uns 3 ou 4 anos, eu acho. Veio até a nossa mesa um morador de rua perguntar se tínhamos algo para dar para ele e fomos interrompidas pela dona do bar, que pediu para ele se afastar. Depois, ela veio até a nossa mesa e disse que não podia dar muita ideia para esse pessoal, porque eram ladrões disfarçados. E foi aí que você disse…
– “Não é porque ele é morador de rua que é ladrão”! E depois, ofereci algo para ele comer e disse para ele se sentar no bar.
– Então, você se lembra?
– É claro que eu lembro! Mas foi isso que fez você reparar em mim? – ele perguntou meio desconfiado.
– Sim! Exatamente isso. Havia um monte de gente no bar. Ninguém falou nada. Nem eu mesma. E você fez questão de se manifestar. Isso me deixou encantada… Achei uma atitude muito masculina… Forte! Coisa rara de se ver nesse dias – os olhos dela brilhavam mais do que nunca. Eram verdadeiros ímãs.
Ele pediu licença e foi até sua mesa pegar o seu copo. Voltou, sentou bem em frente a ela, e ambos embarcaram em uma conversa que durou horas e algumas Heineken. Ambos estavam bebendo com moderação. Ele tinha a sensação de que era o que deveria ser feito. Queria manter as coisas sob controle. Ao que tudo indicava, ela também.
Havia uma empatia, uma espécie de conexão bem fora do comum entre os dois. Descobriram que tinham amigos em comum, hábitos em comum, gostos em comum, até que foram surpreendidos pelo dono do bar dizendo que estavam fechando.
Ele olhou a sua volta e se deu conta que seus amigos tinham ido embora. Aliás, todos tinham ido embora. Só ele e ela estavam no bar. Mais nenhum cliente.
– Vamos continuar a conversa em outro lugar? – ele perguntou com assertividade. A resposta dela o surpreendeu.
– Para onde você quiser! – e enquanto falava, ela mexia em seus cabelos que exalavam um perfume maravilhoso. Ela estava completamente solta e entregue aquele momento e ele também.
– Há um bar perto daqui que fecha mais tarde. Dá para a gente ir andando. Me dá o braço. Andar de salto é complicado…
– Um cavalheiro… Viu como não dava para esquecer?
De braços dados, foram caminhando pela madrugada. Seus corpos agora estavam bem próximos e não havia mais uma mesa entre eles.
Andando ao lado dela, ele se sentia bem como há tempos não se sentia. A diferença de idade entre eles era de 10 anos, mas naquele momento não fazia a menor diferença. Eram apenas um casal feliz, cheio de uma intimidade, de uma cumplicidade que havia sido construída do zero em função de algo que ele mal se lembrava.
Os braços dados e o pele com pele estavam exacerbando a libido dos dois. Era fácil perceber isso pela maneira como eles se olhavam. Uma tensão sexual gigantesca estava sendo criada aos poucos, sem pressa.
Sentaram-se no outro bar e pediram mais uma Heineken, mas dessa vez ele se sentou ao lado dela. Elogiou o seu perfume, e ela ofereceu o seu pescoço sob a alegação de que seria mais fácil sentir o cheiro naquele local. Enquanto ele ia em direção ao pescoço dela, a sua boca interrompeu o seu caminho.
Não se beijaram. Explodiram. Perderam-se nos beijos. Esqueceram do mundo. Até que ela, completamente fora de si, o empurrou, olhou bem dentro de seus olhos e disse:
– Some comigo daqui agora!
– Vou chamar um Uber…
– Não! – ela interrompeu – Eu moro perto daqui. Vamos andando!
Ele obedeceu, obviamente. Foram os 200 metros mais longos da vida dos dois. No silêncio das ruas vazias durante a noite, eles paravam de 10 em 10 passos para mais beijos, mais carícias, mais mãos perdidas, mas sempre com destino certo. A situação beirava o desespero. Nenhum dos dois fazia questão alguma de disfarçar as suas intenções.
– Eu jurava que você estavam sem sutiã, mas de calcinha…
– Sim… Eu estava… Está na bolsa agora.
“Foi por isso que ela quis ir ao banheiro antes caminhar para casa”, pensou.
E aquela situação enlouquecedora continuou até a chegada ao prédio dela. E assim também foi na portaria do prédio. No sofá da portaria. No elevador. E quando a porta da sua casa se abriu, com um só gesto ela ficou nua na sua frente. A garganta dele ficou seca. Ficou extasiado com a perfeição do que via à meia luz. Definitivamente, uma deusa. Uma beleza única, rara, divinal.
– Vem! Eu sou tua!
E assim foi. Ele foi dela e ela foi dele por incontáveis horas. Amaram-se loucamente. Os primeiros raios de sol mostraram corpos arranhados, lanhados e um cheiro incrível de sexo, felicidade e realização no ar.
– Você é uma mulher incrível – disse olhando para o rosto dela, em tom de desabafo.
– Você fez de mim uma mulher incrível – respondeu enquanto aninhava-se no peito dele.
E ficaram ali, em silêncio. Dormiram exaustos por alguns instantes. Até que ele se levantou e começou a se preparar para ir embora. Ela fez um chá e ofereceu um café para ele. Trocaram mais algumas palavras antes da despedida.
– Então… Você vai me dar o seu telefone? – ele perguntou enquanto se encaminhava para a porta.
– Já está na inbox do seu Instagram… – o seu sorriso e a maneira como ela o olhava pareciam de uma menina peralta, daquelas bem arteiras.
– Você foi meu presente de aniversário, sabia?
– Era seu aniversário hoje? Eu não sabia… – suas mãos seguravam o queixo dele com carinho, com doçura.
– Não… É nessa semana. Presente adiantado! Me dá um abraço?
E se abraçaram longamente. E na mente dele, uma música que parecia representa-la: Lady Of The Snow, do Symphony X. Ele tinha certeza que a música era sobre ela.
No caminho até sua casa, acrescentou a seu repertório de crenças que não deveria mais fazer caridade ou se posicionar diante de qualquer injustiça “apenas” porque era o que Deus esperava dele, mas porque nunca seria capaz de prever quem se inspira ou mesmo repara em suas atitudes. Fazer o bem definitivamente era algo que compensava. E ele olhou para o céu e agradeceu a Deus.
Pedi um amor e ele me deu um bolo mofado. “Eu pedi amor”, disse.
– Isso é amor. – Mas não vai me fazer mal? – Talvez.
Olhei e novo e percebi uma larvinha de mosca saindo da cobertura.
– Vai querer ou não? — Ele olhava a larva também. – Não sei. — A larvinha agora afundava cada vez mais no bolo. – Eu não vou ficar parado o dia todo aqui, sabe.
Lembrei que não sabia cozinhar e levei o bolo para a casa. Primeiro tentei tirar tudo que se movia na cobertura, mas era impossível . Me contentei em raspar o mofo, fechar os olhos e engolir uma garfada.
Vomitei.
Dormi com o estômago roncando e acordei com dor de barriga dos infernos. Não saí de casa nos próximos três dias: sem amor, não tinha vontade de tomar banho nem de escovar os cabelos. Não queria olhar o céu e nem os olhos das pessoas. No quinto dia sem amor, não quis abrir as pálpebras muito menos as janelas da casa.
Prestes a perder as forças, olhei para a mesa e resolvi tentar de novo. O estômago reclamou, mas não devolveu. O intestino resolveu não opinar. Fui dormir indigesta e ao mesmo tempo aliviada. Pela manhã, as maquiagens do banheiro voltaram a fazer sentido. As roupas no chão pediram para serem penduradas. A maçaneta da porta pedia para ser girada e eu obedeci.
A cada passo, sentia o estômago revirar, mas também sentia que estava viva. Segui na rua disfarçando uns arrotos enquanto olhava vitrines.
À noite, resolvi encarar o bolo de novo.
Ele não pareceu tão ruim quanto no dia anterior. Na verdade, olhando de lado nem dava para ver a parte feia. Segui comendo o bolo, segui com o estômago revirado e mais importante: segui com vontade de entrar no ônibus e pagar minhas contas.
Até que o bolo acabou.
Preocupada, fui até ele pedir mais amor. O bolo que ele me entregou estava coberto de moscas.
– Está fedendo demais. — comentei. – É o que eu tenho.
Não consegui colocar sobre a mesa da sala, já que atraía mais moscas. Botei dentro do forno e cortei uma fatia: o cheiro era insuportável. Tampei o nariz aproximei o garfo da boca, tentando não mastigar as moscas mortas. Sabendo que não poderia ficar sem amor e nem me livrar de todos os insetos, engoli. O estômago não roncou nem a garganta contraiu: já estavam habituados.
Quando o amor acabou, ele me entregou um prato fundo.
– Mas isso é vômito! – Eu chamo de amor.
Entendi que era bolo vomitado e resolvi guardar na geladeira. No dia seguinte provei uma colherada antes de ir trabalhar, e, para a minha surpresa, eu já não sentia mais gosto de nada. Tomei outra colherada à noite, pra garantir que iria ter vontade de tomar banho e sair com meus amigos.
No dia seguinte tive um pouco de febre, mas segui dando umas colheradas. Dois dias depois, a cabeça doeu.
A febre voltou. A garganta inchou.
Sem conseguir engolir o amor, fechei as cortinas e esperei a morte bater. Quando ouvi o som da campainha, suspirei aliviada.
Mas não era ele.
Não era alguém que eu conhecesse. Tinha cabelos encaracolados e trazia um prato com uma espécie de massa branca. Leve, limpa, tinha cheiro de primavera.
– Isso não é amor. — Eu disse. – É amor, sim. — Parecia surpreso. – Não, não é. — Eu ri.
Os olhos dele encheram de lágrimas. Antes que eu pudesse mudar de ideia, levou a torta de creme embora.
– Eu sei, mas você precisa fazer uma escolha. A gente não pode ficar nessa para sempre, concorda? – os olhos dele estavam fixos no horizonte. Ao fundo, as nuvens cinzentas por sobre a praia davam um tom de mistério aquela conversa difícil e necessária, ao menos para ele. O tom de sua voz era suave, mas também era firme. Ele precisava de algumas respostas, bem óbvias e ao mesmo tempo essenciais. Ela parecia não se dar conta disso.
– Eu não sei o que dizer… – ela fitava o chão enquanto respondia. Os braços estavam cruzados. O corpo todo retesado. Sua mente girava diante das incertezas que se agigantavam dentro dela. “Eu não sei… Eu não sei… Eu não sei… ” Era tudo que ela conseguia dizer no momento. Tinha plena noção do quanto estava insegura por conta de seu último relacionamento. Pensar em viver algo tão doloroso novamente simplesmente a paralisava. Ela não conseguia pensar em recomeços. Ainda estava sendo açoitada pelo fim.
– Bom… Isso para mim é uma resposta. Não vou insistir mais, apesar de gostar muito de você. A gente se esbarra por aí. Qualquer coisa, me liga.
Ela ainda tentou dizer algo, mas ele já estava com os fones no ouvido. Já tinha a resposta que precisava. Ficou decepcionado, mas engoliu a verdade em seco de uma só vez. Foi embora sem olhar para trás.
Chegou em casa e foi tomar um banho. Se serviu com um pouco de água de coco e pegou o telefone. A indecisão dela era uma decisão na visão dele. “Já passei por isso antes e aprendi a lição”, disse para si mesmo diante do espelho, fazendo força para acreditar em suas próprias palavras. Por conta disso, até para provar que era capaz de esquecer tudo aquilo, resolveu responder a uma mensagem que recebera mais cedo no WhatsApp.
“Oi! Tudo bem? Ainda está valendo o convite?”
A resposta veio em menos de 30 segundos.
“Sim! Faz tempo que não como aquela pizza! Você me encontra lá em 1 hora?”
“Com certeza! Bjs!”
Ela mandou um coração de volta. Ele sorriu.
Foi um sorriso conflitante, hipócrita. Um sorriso de quem sabia que não precisaria passar a noite sozinho, mas que também sabia que não era com aquela mulher que ele gostaria de estar. Na prática, ele estava fugindo deste e de outros encontros. Apesar de não estar oficialmente namorando, não gostava de sair com mais de uma mulher ao mesmo tempo. Era algo dele. O seu coração era assim. Ele era assim. “Pelo menos ela foi sincera. Logo, caminho aberto para a próxima. Para as próximas.” Nem ele mesmo acreditava em suas palavras.
Se encontraram no restaurante como combinado. Ela tinha um olhar de femme fatale. Na cabeça dele, ela era uma devoradora de homens. Ele seria apenas mais um. Ele via isso como algo bom: nenhuma expectativa é o equivalente a nenhuma frustração.
– Então… – ela disse – Finalmente resolveu atender ao meu convite… Eu já estava quase desistindo.
– Nada… Só estava meio atarefado – os olhos dele estavam dentro do decote dela. Era impossível não notar a fartura daqueles seios.
– Aposto que tem a ver com a sua namorada… Como é mesmo o nome dela? – o tom da voz dela era de deboche.
– Eu não tenho namorada. E eu não estaria aqui se tivesse uma. Vamos beber o quê?
Apesar dele não ter namorada, o comentário mexeu com ele. “Eu não tenho namorada, mas gosto de uma pessoa. Isso vai muito além de um título ou estado civil “, pensou.
– Eu tenho uma sugestão. A gente come algo mais leve… Tipo uma burrata. E depois a gente vai para um lugar mais calmo. Pode ser?
– O quê? – ele estava olhando para o cardápio enquanto ouviu o convite. Ficou olhando para ela como se não estivesse entendendo nada, muito embora fosse capaz de compreender exatamente o que estava acontecendo.
– Deixa disso… Faz 3 meses que quero sair com você. Olha a nossa idade… Não vamos perder tempo com formalidades, vai…
– Mas e a pizza? Eu estou com fome! Eu quero comer pizza! Garçom, quero uma burrata. Qual pizza você me recomenda? Sim! Pode ser essa! Deve ser deliciosa! Tudo bem com você se eu pedir essa? Ok. E o vinho vai ser… Aquele ali da outra mesa. O que aquele pessoal está bebendo…
A cardápio virou a sua tábua de salvação. Lembrou da série Seinfeld e das argumentações absurdas entre os personagens. Era assim que ele estava se sentindo.
Eles riram muito durante o jantar. Comeram a burrata, tomaram vinho, comeram pizza… Teve até sobremesa! Ela ainda insistiu algumas vezes no “a gente vai para um lugar mais calmo”. Ele insistiu nas desculpas no maior estilo Seinfeld. Em alguns momentos, teve até vontade de rir. Quem sabe em outros tempos, em outro lugar. Quem diria não para essa mulher? Ele disse da forma mais educada que conseguiu. Afinal de contas, nunca se sabe do futuro.
Despediram-se. Nada de “até manhã” ou “depois a gente se fala”. Ela foi para a casa dela. Ele foi para a casa dele. Se ela ficou chateada, ele não percebeu. Se sentiu bem por ter sido fiel a seus sentimentos e isso não tinha preço.
Ele ligou a TV e resolveu verificar as suas mensagens no WhatsApp. Uma delas dizia:
“Pensei muito na nossa conversa de hoje de tarde. Eu estou gostando de você e isso me deixa insegura. Sei que você não tem obrigação de entender isso. Me liga quando puder.”
Ao invés de responder à mensagem, preferiu ligar. Já eram 3 horas da manhã. Ela atendeu com voz de sono já pedindo desculpas.
– Eu queria me desculpar pelo que te disse hoje na praia…
– Eu que deveria pedir desculpas pelo ultimato… – disse ele interrompendo-a com delicadeza.
– Digamos que seu ultimato me fez perceber algumas coisas… Sendo uma delas que não estou disposta a ficar longe de você – sua voz era um misto de malícia e sensualidade. Ela estava se confessando e pelo que ele sabia dela, falar de sentimentos era algo que ela realmente tinha dificuldades em fazer.
– Quer dizer que ultimatos funcionam, professora? – o comentário sarcástico a fez rir justamente por conta dela ser formada em Relações Internacionais e ministrar aulas sobre o tema.
– Depende… – a risada veio acompanhada de uma explicação – Desde que a outra parte não entenda como um blefe e não esteja disposta a encerrar as conversações, funciona sim.
– Eu não estava blefando.
– Eu sei.
Imediatamente, ele foi até a geladeira e abriu uma garrafa de espumante. Ele precisava comemorar. Em ambos os casos, em episódios completamente distintos, seguiu a sua intuição e ouviu o seu coração. Na praia, foi embora no momento certo. Na restaurante, foi fiel a seus sentimentos. Sentiu orgulho de si mesmo. Sorriu.
Os dois dormiram juntos em casas separadas naquela noite. As negociações avançariam pela manhã. Diplomatas em missão de paz, por assim dizer. A esperança parecia estar vencendo o medo.
E a pizza? A pizza estava deliciosa. A vida estava deliciosa.
Uma vez, antes de sumir no mundo, ela deu uma flor para minha mãe. Uma daquelas que vem em um vaso pequeno. Uma violeta. Ela quis agradecer a minha mãe por tê-la recebido em sua casa. A flor era cor de rosa, talvez arroxeada. Algo assim. Homens não costumam ser bons com cores.
Todo dia eu via minha mãe conversar com a tal flor. Nada de anormal. Ela sempre dava bom dia para as plantas da casa. Só que no caso dessa flor, eu sentia que era diferente. Como tinha sido um presente, a sensação que eu tinha era de que havia algo de especial entre as duas. Não sei explicar ao certo o que, mas sei que havia.
Confesso que eu passava ao lado da tal flor e pensava em joga-la no lixo. Só que quando eu chegava perto dela, eu simplesmente não tinha coragem. Não seria justo fazer nada contra ela, até porque eu sabia que ela havia sido dada de coração. Eu tinha certeza disso.
E os dias se passaram… As semanas se passaram… Os meses se passaram… Talvez uns 5 ou 6 meses. Eu não fazia ideia que uma flor dessas poderia durar tanto! E eu fui me acostumando… Não dava bom dia para ela, mas era uma lembrança que me fazia sorrir.
Um dia, porém, ao chegar perto de minha mãe, percebi que ela estava entristecida. Olhei para o vasinho e percebi que a flor estava seca. E eu perguntei o óbvio:
– O que houve com ela? Morreu?
E minha mãe me olhou nos olhos, colocou a mão no meu peito como só uma mãe sabe colocar, e me disse:
– Mas ela está viva aqui, bem dentro do seu coração.
E nesse dia, depois de tantos anos, eu finalmente descobri que meu coração era e é um jardim. E minhas lágrimas o regaram. Lágrimas represadas. Simplesmente lágrimas.
Depois disso, vi muitas flores. Há flores aqui e ali. É só saber procurar. Mas daquela flor, que sequer era minha, eu nunca mais me esqueci, e sei que, de alguma forma, ela ainda vive dentro de mim.
Nos encontramos no calçadão da Praia de Icaraí. A fisionomia dela estava fechada. Nos sentamos em um dos bancos de concreto para conversar.
– Há algo que está me incomodando… Você disse que ela pode ter te procurado por conta dos seus posts a meu respeito no seu blog. A sensação que eu tenho é que você, de alguma forma, está fazendo mais do mesmo. O que você pretende com isso? Atrai-la novamente? Quer que ela venha atrás de você?
– Não é nada disso! Não mesmo. Eu comecei a escrever da gente no blog porque eu estava feliz, porque a minha vida estava indo em frente. O meu blog sempre foi um lugar onde expressei o que estava sentindo, o que estava vivendo. O que eu disse é que ela pode, por conta do que postei sobre nós, ter vindo atrás de mim… Só cogitei essa possibilidade.
Ela me olhava com incredulidade. Não sentia confiança no que eu dizia. Era compreensível.
– O blog é seu. Sei o quanto ele é importante para você, mas se ponha no meu lugar! Eu não quero isso para a minha vida! Gosto do que você escreve, não se engane. Você consegue capturar a essência das nossas conversas, das coisas que já vivemos juntos. Não tenho como negar isso. Mas supondo que a gente passe o Réveillon juntos, qual será o próximo passo? Escrever sobre os detalhes da nossa noite? Não quero isso! Não aceito! Estou me sentindo uma espécie de isca e não gosto disso. Eu sou uma mulher livre e desimpedida. Minha vida é um livro aberto para nossos amigos, para quem nos cerca. Sem querer ser pretensiosa, se quiser falar de mim, escreva uma poesia, poste uma música ou algo do tipo. Falar do que fazemos ou mesmo se estamos juntos ou não é algo que não aceito, e se você quiser continuar a trilhar esse caminho, fará isso sozinho.
Ela tinha razão. Coloquei-me no lugar dela e consegui entender a exata dimensão do que ela estava dizendo.
– Você não é uma isca! Não na minha cabeça, mas eu entendo o que diz e concordo. De verdade.
– Então, ponha um fim nessa novela. Não quero a minha vida exposta. Não quero que ninguém saiba de qualquer coisa que seja sobre nós dois através do seu blog. Quem tiver que saber algo de nós dois, saberá.
– Nós dois? Isso quer dizer que…
Fui interrompido. Ela estava perdendo a paciência.
– Corte o mal pela raiz! É isso que eu quero e essa é uma condição para qualquer outro passo adiante.
Ela se levantou. Eu me levantei também. Era chegado o momento de eu dizer um sim ou um não. Eu estava reticente por conta do prazer que escrever me trazia, mas era impossível negar que ela tinha mais do que motivos para se colocar de maneira contundente.
– Ok. Você tem a minha palavra. Posso só fazer um último post sobre isso? É que há leitores que estavam realmente gostando do que eu estava escrevendo. Eu te mostrei as mensagens. Você mesma as viu!
– Sim, eu sei. A história dos morangos veio até mim enviada por uma amiga que nem sabe de nós dois. Não nego que sorri ao recebe-la, mas não é o momento… Não sei o que a vida reserva para nós, mas pelo menos no seu blog, é preciso que isso acabe agora mesmo. Escreva algo sobre isso quando chegar em casa e pronto.
– Farei isso. Pode estar certa.
– E outra coisa… Por que retirou os textos que fez para ela? Você não viveu tudo aquilo? Ela, então, define o que fica ou não no seu blog?
– No momento, acho o mais adequado a ser feito, mas novamente você tem razão.
– Deixe que as pessoas saibam quem você é e o que você sente! Não percebe que é justamente o que você é e sente que me faz estar aqui? É o seu passado e você é a soma de tudo isso que viveu. Não se puna por isso! Eu li coisas lindas naquelas poesias! Eu vi um homem se entregando por completo para uma mulher! Que mulher não quer isso? Azar o dela se não percebeu ou entendeu quem você é. Azar para uns, sorte para outros. A vida é assim. Não mude! É só o que te peço! Não deixe que ela o defina!
– Sim… Obrigado por ter me dito isso. É bom ser compreendido.
– Já consigo até imaginar essa história sendo contada para os seus amigos e eles dizendo: “Tinha que ser com você, Fábio!” É isso que te faz ser o Fábio!
Eu sorri. A fisionomia dela ficou mais leve. Creio que a minha também, apesar de ter sido tocado profundamente pelas suas palavras. Ela conseguia me ver, me enxergar além do óbvio, e me fez sentir um orgulho profundo de mim mesmo, de quem eu sou, do que eu sinto.
– Vamos lá na Beira Mar encomendar o que vamos ter para o nosso Réveillon?
– Quer dizer que vamos passar juntos a virada?
– Você já sabia que sim, seu tonto! Eu só precisava tirar isso do meu peito.
E fomos caminhando decididos na direção da Beira Mar. Se tudo daria certo? Eu não tinha a menor ideia. Nenhuma! Eu queria ao menos tentar.
– Você tem talento – ela continuou – É inegável. Poderia escrever um livro se quisesse. Um romance baseado em fatos reais, por exemplo. No meu caso, me ver através de seus olhos me deixou encantada… Você conseguiu me capturar em palavras. Percebeu detalhes sobre mim que nem eu mesma conhecia. Se for o caso, continue a escrever e não publique. E um dia – é meu ego e meu lado mulher falando alto agora, portanto, ignore – publique tudo de uma vez!
Fiquei ruminando a ideia enquanto caminhávamos. Tive que fazer uma pergunta…
– E se eu fosse publicar um livro, você teria alguma sugestão para o título?
Ela parou de andar, e apesar de estar usando uma máscara, consegui ver que estava sorrindo. E então, ela olhou nos meus olhos e disse:
– Daniela.
– Que pretensiosa! – soltei uma gargalhada e continuei minha caminhando em direção a esse novo mundo sem qualquer tipo de promessa ou garantia, mas cheio de possibilidades.