Traquinagens

Todos os dias que eu pedi que se fossem lentamente,

Não duraram mais do que um estalar de dedos.

Todos os dias que eu pedi que se fossem rapidamente,

Não duraram menos de que uma eternidade.

Pensei em usar todos os tipos instrumentos estatísticos,

Pata facilitar a minha passagem,

Considerando valores, dispersões, pesos e frequências,

Ou mesmo fazer com dados uma modelagem,

Seguida de alguma regressão ou análise,

Mas o resultado era sempre mesmo:

24 horas por dia –

Todos os dias –

Dormindo ou acordando cedo ou tarde.

E depois de todo este esforço,

Cheguei a uma única conclusão:

Todo dia é uma certeza

Permeada de talvezes:

Algumas vezes sim,

Algumas vezes não,

E nada me cabe entender,

Porque por mais que a vida seja minha,

As traquinagens da vida minhas não são.

Neve em pleno verão

Como de costume, sentou-se na mesa de seu bar favorito junto com seus amigos e olhou a seu redor para fazer uma espécie de reconhecimento de terreno. Bem a sua frente, uma duas ou três mesas depois, ele se deparou com uma mulher olhando fixamente em sua direção.

Seus olhos e seus cabelos compridos eram negros como uma noite sem lua e sem estrelas. Sua pele era branca como neve. Absurdamente bonita, tal como uma deusa nórdica. Parecia ter 30, 35 anos no máximo. Movia-se com delicadeza e classe. Falava com desenvoltura. Conversava com uma amiga, mas seus olhos estavam bem longe daquela conversa. Era algo tão contundente que era impossível de não ser notado. Os olhos dela o convidavam para chegar mais perto. Ele se sentia hipnotizado. Era praticamente impossível resistir, até porque ele não tinha intenção alguma de fugir daquela deliciosa e inesperada situação.

Era um bar cheio de pessoas bonitas e bem arrumadas, e justamente por isso ele resolveu fazer um “teste de sanidade” com um de seus amigos.

– Me faz um favor? Há uma mulher bem aqui na minha frente…

– Ela não para de olhar para você – respondeu o seu amigo, interrompendo-o.

Ele se deu conta, então, de que precisava fazer algo. Como ela estava acompanhada de uma amiga, sua aproximação tinha que ser estratégica. “Talvez quando a amiga dela for ao banheiro”, pensou. Sabia que não poderia vacilar ou hesitar. Precisava agir rapidamente. Era muito óbvio que os todos homens do bar haviam notado-a. Impossível não nota-la. Impossível.

E assim foi. Quando a amiga se levantou presumidamente para ir ao banheiro, ele imediatamente se levantou também. Sua missão era clara. Ele precisava se apresentar e entender o que estava acontecendo. Foi em direção à mesa e no momento em que iria falar com ela, a amiga retornou. “Esqueci meu celular!”, disse ela. Ele pensou em passar direto. Não deu tempo. Antes que ele pudesse desviar sua rota, a mulher o segurou pelo antebraço delicadamente e olhou bem no fundo de seus olhos.

– Não vai se apresentar? – o coração dele disparou. Por alguns instantes, sentiu como se tivesse esquecido o próprio nome.

– Seu nome é… – ela insistiu. E ele fez o que sabia fazer de melhor: sorriu de volta.

– Antes de eu dizer meu nome, me ajuda com uma coisa? É impressão minha ou você estava olhando na minha direção desde que cheguei aqui?

– Eu sei o seu nome. Não precisa me dizer – sua voz era doce e suave, talvez mais hipnótica ainda que seu olhar – E sim, eu estou olhando para você desde que chegou aqui. Você não se lembra de mim?

Ele reparou bem na fisionomia dela e não se lembrou de nada. “Como eu posso não me lembrar de uma mulher bonita como essa? Ela deve estar brincando comigo. Só pode!”

– Vou ser muito sincero… Eu não lembro. Tem certeza que sou eu? Não sou de me esquecer de uma fisionomia, ainda mais de uma mulher tão bonita quanto você…

– Eu entendo… Você estava acompanhado no dia – ela disse sorrindo.

– Que dia? – ele estava começando a ficar angustiado.

– Eu estava sentada em um bar com um amiga… Falando nisso, deixa eu te apresentar essa minha amiga.

A amiga dela estava voltando. Deu um oi meio sem graça e disse que estava indo embora. Chamou-a para ir embora com ela.

– Vou ficar – disse ela olhando fixamente nos olhos dele.

Elas se despediram e a conversa recomeçou.

– Eu estava sentada em um bar com uma amiga. Não era essa. Era outra. Isso faz uns 3 ou 4 anos, eu acho. Veio até a nossa mesa um morador de rua perguntar se tínhamos algo para dar para ele e fomos interrompidas pela dona do bar, que pediu para ele se afastar. Depois, ela veio até a nossa mesa e disse que não podia dar muita ideia para esse pessoal, porque eram ladrões disfarçados. E foi aí que você disse…

– “Não é porque ele é morador de rua que é ladrão”! E depois, ofereci algo para ele comer e disse para ele se sentar no bar.

– Então, você se lembra?

– É claro que eu lembro! Mas foi isso que fez você reparar em mim? – ele perguntou meio desconfiado.

– Sim! Exatamente isso. Havia um monte de gente no bar. Ninguém falou nada. Nem eu mesma. E você fez questão de se manifestar. Isso me deixou encantada… Achei uma atitude muito masculina… Forte! Coisa rara de se ver nesse dias – os olhos dela brilhavam mais do que nunca. Eram verdadeiros ímãs.

Ele pediu licença e foi até sua mesa pegar o seu copo. Voltou, sentou bem em frente a ela, e ambos embarcaram em uma conversa que durou horas e algumas Heineken. Ambos estavam bebendo com moderação. Ele tinha a sensação de que era o que deveria ser feito. Queria manter as coisas sob controle. Ao que tudo indicava, ela também.

Havia uma empatia, uma espécie de conexão bem fora do comum entre os dois. Descobriram que tinham amigos em comum, hábitos em comum, gostos em comum, até que foram surpreendidos pelo dono do bar dizendo que estavam fechando.

Ele olhou a sua volta e se deu conta que seus amigos tinham ido embora. Aliás, todos tinham ido embora. Só ele e ela estavam no bar. Mais nenhum cliente.

– Vamos continuar a conversa em outro lugar? – ele perguntou com assertividade. A resposta dela o surpreendeu.

– Para onde você quiser! – e enquanto falava, ela mexia em seus cabelos que exalavam um perfume maravilhoso. Ela estava completamente solta e entregue aquele momento e ele também.

– Há um bar perto daqui que fecha mais tarde. Dá para a gente ir andando. Me dá o braço. Andar de salto é complicado…

– Um cavalheiro… Viu como não dava para esquecer?

De braços dados, foram caminhando pela madrugada. Seus corpos agora estavam bem próximos e não havia mais uma mesa entre eles.

Andando ao lado dela, ele se sentia bem como há tempos não se sentia. A diferença de idade entre eles era de 10 anos, mas naquele momento não fazia a menor diferença. Eram apenas um casal feliz, cheio de uma intimidade, de uma cumplicidade que havia sido construída do zero em função de algo que ele mal se lembrava.

Os braços dados e o pele com pele estavam exacerbando a libido dos dois. Era fácil perceber isso pela maneira como eles se olhavam. Uma tensão sexual gigantesca estava sendo criada aos poucos, sem pressa.

Sentaram-se no outro bar e pediram mais uma Heineken, mas dessa vez ele se sentou ao lado dela. Elogiou o seu perfume, e ela ofereceu o seu pescoço sob a alegação de que seria mais fácil sentir o cheiro naquele local. Enquanto ele ia em direção ao pescoço dela, a sua boca interrompeu o seu caminho.

Não se beijaram. Explodiram. Perderam-se nos beijos. Esqueceram do mundo. Até que ela, completamente fora de si, o empurrou, olhou bem dentro de seus olhos e disse:

– Some comigo daqui agora!

– Vou chamar um Uber…

– Não! – ela interrompeu – Eu moro perto daqui. Vamos andando!

Ele obedeceu, obviamente. Foram os 200 metros mais longos da vida dos dois. No silêncio das ruas vazias durante a noite, eles paravam de 10 em 10 passos para mais beijos, mais carícias, mais mãos perdidas, mas sempre com destino certo. A situação beirava o desespero. Nenhum dos dois fazia questão alguma de disfarçar as suas intenções.

– Eu jurava que você estavam sem sutiã, mas de calcinha…

– Sim… Eu estava… Está na bolsa agora.

“Foi por isso que ela quis ir ao banheiro antes caminhar para casa”, pensou.

E aquela situação enlouquecedora continuou até a chegada ao prédio dela. E assim também foi na portaria do prédio. No sofá da portaria. No elevador. E quando a porta da sua casa se abriu, com um só gesto ela ficou nua na sua frente. A garganta dele ficou seca. Ficou extasiado com a perfeição do que via à meia luz. Definitivamente, uma deusa. Uma beleza única, rara, divinal.

– Vem! Eu sou tua!

E assim foi. Ele foi dela e ela foi dele por incontáveis horas. Amaram-se loucamente. Os primeiros raios de sol mostraram corpos arranhados, lanhados e um cheiro incrível de sexo, felicidade e realização no ar.

– Você é uma mulher incrível – disse olhando para o rosto dela, em tom de desabafo.

– Você fez de mim uma mulher incrível – respondeu enquanto aninhava-se no peito dele.

E ficaram ali, em silêncio. Dormiram exaustos por alguns instantes. Até que ele se levantou e começou a se preparar para ir embora. Ela fez um chá e ofereceu um café para ele. Trocaram mais algumas palavras antes da despedida.

– Então… Você vai me dar o seu telefone? – ele perguntou enquanto se encaminhava para a porta.

– Já está na inbox do seu Instagram… – o seu sorriso e a maneira como ela o olhava pareciam de uma menina peralta, daquelas bem arteiras.

– Você foi meu presente de aniversário, sabia?

– Era seu aniversário hoje? Eu não sabia… – suas mãos seguravam o queixo dele com carinho, com doçura.

– Não… É nessa semana. Presente adiantado! Me dá um abraço?

E se abraçaram longamente. E na mente dele, uma música que parecia representa-la: Lady Of The Snow, do Symphony X. Ele tinha certeza que a música era sobre ela.

No caminho até sua casa, acrescentou a seu repertório de crenças que não deveria mais fazer caridade ou se posicionar diante de qualquer injustiça “apenas” porque era o que Deus esperava dele, mas porque nunca seria capaz de prever quem se inspira ou mesmo repara em suas atitudes. Fazer o bem definitivamente era algo que compensava. E ele olhou para o céu e agradeceu a Deus.

Por acaso

O dia amanheceu chuvoso, nublado. Melancólico, por assim dizer. Enquanto eu observava da janela da minha sala carros e prédios, pessoas indo e vindo, uma forte inquietude tomou conta de mim. Eu também estava chuvoso, nublado. Seria o momento perfeito para pegar um cigarro, mas felizmente eu não fumo.

E meio que sem perceber, comecei a me olhar por dentro. Não gostei do que vi. Havia vários pontos de interrogação na minha mente, e eu estava sendo consumido por eles. Por quê? Como? Onde? Será? Quando? Eu não tinha nenhuma resposta. Nenhuma.

Dizem que fazer exercício ajuda nessas horas. Sem pensar duas vezes, fui para a academia. Eu não gosto de guarda-chuva, e por algum motivo gosto muito da chuva batendo no meu corpo. E nesse dia, a chuva parecia especial. Parecia estar me lavando. Não sei explicar.

E pelo caminho até a academia, vi alguns comércios ainda abrindo. A vendedora da ótica onde comprei meus óculos me deu bom dia. O vendedor de flores também. O pessoal da recepção da academia idem. Todos esbanjavam sorrisos. Eu não. Será que eu era o único triste?

Coloquei meu fone de ouvido e liguei o Spotify. Whitesnake, para ser mais preciso. A combinação da música com os exercícios estava surtindo algum tipo de efeito. Pelo menos naqueles momento os pontos de interrogação se tornaram secundários. Eu estava mais preocupado com a ausência do sorriso no meu rosto.

Fui ao banheiro da academia antes de ir embora, e me olhei no espelho. Foi difícil me encarar. Difícil me olhar olhos nos olhos. Difícil não ver o meu sorriso. Difícil ao ponto de lágrimas escorrem pela minha face. Realmente um dia chuvoso e nublado para mim.

De dentro do banheiro, ouvi um grito. Senti que era algo relacionado a dor. Saí correndo e vi uma senhora sentada no chão com dor nas costas.

Aproximei-me sem saber exatamente o que fazer. Ofereci minha mão para ajuda-la a se levantar.

– Obrigada, meu filho!

Eu evitava os olhos dela, mas eu a levantei de tal forma que ela ficou bem de frente para mim.

– Você estava chorando?

Tentei disfarçar. Culpei o suor da academia, um possível cisco no olho, conjuntivite… Ela não aceitou a resposta.

– Todo mundo chora. Não tenha vergonha disso. Não sei o motivo das suas lágrimas, mas sei que as minhas costas estão quebradas. Isso pode me fazer chorar! Aliás, faz muito tempo que você trabalha aqui na academia?

– Não, eu não trabalho aqui… É que vi que a senhora estava precisando de ajuda e saí correndo do banheiro…

– Chegou antes do pessoal da academia, não é mesmo? Entende onde quero chegar?

– Sinceramente, não… Estou um pouco lento hoje.

– Eu precisei de ajuda. Você apareceu. Saiu de casa querendo ajudar uma pessoa com dor nas costas ou foi algo que aconteceu por acaso?

– Totalmente por acaso. E a sorte é que eu já havia desligado a música, ou não teria ouvido a senhora gritar.

– Percebe que várias coisas aconteceram para que você estivesse aqui, bem na minha frente? Percebe que o acaso fez com que você, sem me conhecer, me ajudasse? Percebe agora onde quero chegar?

– Acho que sim… Eu gosto de ajudar as pessoas.

– E de ser ajudado, você gosta?

Fiquei em silêncio. A resposta óbvia seria um sim, mas hesitei… Ela sorriu.

– Permita-se ser ajudado, meu filho. Sei que a vida nem sempre é fácil, mas se você se fechar para ela, nada do que está aí dentro vai ser curado. Permita-se viver o acaso. Você pode se surpreender com os resultados. Agora, vai lá no banheiro e seca seus olhos. Além de tudo, você está descabelado!

Ela soltou uma gargalhada, eu sorri e fui para o banheiro. Acertei meu cabelo, limpei meu rosto, e me lembrei do meu sorriso ausente… Eu não sabia exatamente o porquê, mas me senti na obrigação de sair do banheiro sorrindo. Quando saí, não vi mais a senhora… Devo ter demorado muito nas minhas divagações.

– Bom dia, pessoal! Até amanhã!

Falei firme com o pessoal da recepção. Eu estava sorrindo. Eles também estavam. Algo havia mudado em mim.

Dei novamente um bom dia para o vendedor de flores e para a vendedora da ótica. Peguei um brinquedinho de uma criança pirracenta que estava no chão e o devolvi para a mãe, enquanto um cachorro quase derrubava a mesa de um café para comer o pão de queijo do seu dono.

Realmente, estava tudo muito engraçado. Subi para tomar banho, e comecei a pensar em tudo que tinha acontecido. Lembrei-me da senhora, da interação que tivemos, e de como a rua tinha ficado, de repente, super interessante.

Não foi a rua que mudou. Nada ficou mais interessante do que já era. Tudo acontecia ali, todos os dias, bem diante do meu nariz, e precisou uma senhora sentir dor nas costas na academia para eu perceber tudo isso. Obra do acaso, creio eu.

Os pontos de interrogação reapareceram, mas decidi que não daria muita atenção para eles. Saindo do banho, comecei imediatamente a trabalhar. Sim, eu trabalho de casa.

Eu estava revigorado, e tomei uma decisão. Decidi me abrir para o caso justamente nesse dia chuvoso e nublado. Senti um arrepio no meu corpo. Os pontos de interrogação são insistentes! Preferi ignora-los por ora, e meu telefone tocou.

– Fala, Fábio!!! Tudo beleza?

Era um amigo. Agradeci mentalmente pelo encontro com aquela senhora. Sorri novamente. Acaso: aqui vou eu.

acaso

Mero acidente

Cada coisa a seu tempo

Nas caminhadas

Ar em movimento

Um sorriso matreiro

Que fareja o melhor momento

 

Feito cão de caça

Olhos fixos na presa

Que refuga, disfarça

Enquanto ajeita seus cabelos

Égua da mais pura raça

 

E no esbarrão criminoso

Mãos que agarram pela cintura

E em tom vulgarmente jocoso

Trocam palavras absurdas

Com conteúdo para lá de apetitoso

 

E enquanto escondem o que sentem

Acreditam em quase tudo

Que suas bocas propositalmente mentem

Querem apenas gastar o tempo

Para fazerem o que quer que pensem

 

E somem pela madrugada

Vagando pelo mundo cinzento

Silhuetas que aos outros não dizem nada

Mas que sabem da noite que os espera:

Suntuosa, impetuosa e depravada.

large.gif