Neve em pleno verão

Como de costume, sentou-se na mesa de seu bar favorito junto com seus amigos e olhou a seu redor para fazer uma espécie de reconhecimento de terreno. Bem a sua frente, uma duas ou três mesas depois, ele se deparou com uma mulher olhando fixamente em sua direção.

Seus olhos e seus cabelos compridos eram negros como uma noite sem lua e sem estrelas. Sua pele era branca como neve. Absurdamente bonita, tal como uma deusa nórdica. Parecia ter 30, 35 anos no máximo. Movia-se com delicadeza e classe. Falava com desenvoltura. Conversava com uma amiga, mas seus olhos estavam bem longe daquela conversa. Era algo tão contundente que era impossível de não ser notado. Os olhos dela o convidavam para chegar mais perto. Ele se sentia hipnotizado. Era praticamente impossível resistir, até porque ele não tinha intenção alguma de fugir daquela deliciosa e inesperada situação.

Era um bar cheio de pessoas bonitas e bem arrumadas, e justamente por isso ele resolveu fazer um “teste de sanidade” com um de seus amigos.

– Me faz um favor? Há uma mulher bem aqui na minha frente…

– Ela não para de olhar para você – respondeu o seu amigo, interrompendo-o.

Ele se deu conta, então, de que precisava fazer algo. Como ela estava acompanhada de uma amiga, sua aproximação tinha que ser estratégica. “Talvez quando a amiga dela for ao banheiro”, pensou. Sabia que não poderia vacilar ou hesitar. Precisava agir rapidamente. Era muito óbvio que os todos homens do bar haviam notado-a. Impossível não nota-la. Impossível.

E assim foi. Quando a amiga se levantou presumidamente para ir ao banheiro, ele imediatamente se levantou também. Sua missão era clara. Ele precisava se apresentar e entender o que estava acontecendo. Foi em direção à mesa e no momento em que iria falar com ela, a amiga retornou. “Esqueci meu celular!”, disse ela. Ele pensou em passar direto. Não deu tempo. Antes que ele pudesse desviar sua rota, a mulher o segurou pelo antebraço delicadamente e olhou bem no fundo de seus olhos.

– Não vai se apresentar? – o coração dele disparou. Por alguns instantes, sentiu como se tivesse esquecido o próprio nome.

– Seu nome é… – ela insistiu. E ele fez o que sabia fazer de melhor: sorriu de volta.

– Antes de eu dizer meu nome, me ajuda com uma coisa? É impressão minha ou você estava olhando na minha direção desde que cheguei aqui?

– Eu sei o seu nome. Não precisa me dizer – sua voz era doce e suave, talvez mais hipnótica ainda que seu olhar – E sim, eu estou olhando para você desde que chegou aqui. Você não se lembra de mim?

Ele reparou bem na fisionomia dela e não se lembrou de nada. “Como eu posso não me lembrar de uma mulher bonita como essa? Ela deve estar brincando comigo. Só pode!”

– Vou ser muito sincero… Eu não lembro. Tem certeza que sou eu? Não sou de me esquecer de uma fisionomia, ainda mais de uma mulher tão bonita quanto você…

– Eu entendo… Você estava acompanhado no dia – ela disse sorrindo.

– Que dia? – ele estava começando a ficar angustiado.

– Eu estava sentada em um bar com um amiga… Falando nisso, deixa eu te apresentar essa minha amiga.

A amiga dela estava voltando. Deu um oi meio sem graça e disse que estava indo embora. Chamou-a para ir embora com ela.

– Vou ficar – disse ela olhando fixamente nos olhos dele.

Elas se despediram e a conversa recomeçou.

– Eu estava sentada em um bar com uma amiga. Não era essa. Era outra. Isso faz uns 3 ou 4 anos, eu acho. Veio até a nossa mesa um morador de rua perguntar se tínhamos algo para dar para ele e fomos interrompidas pela dona do bar, que pediu para ele se afastar. Depois, ela veio até a nossa mesa e disse que não podia dar muita ideia para esse pessoal, porque eram ladrões disfarçados. E foi aí que você disse…

– “Não é porque ele é morador de rua que é ladrão”! E depois, ofereci algo para ele comer e disse para ele se sentar no bar.

– Então, você se lembra?

– É claro que eu lembro! Mas foi isso que fez você reparar em mim? – ele perguntou meio desconfiado.

– Sim! Exatamente isso. Havia um monte de gente no bar. Ninguém falou nada. Nem eu mesma. E você fez questão de se manifestar. Isso me deixou encantada… Achei uma atitude muito masculina… Forte! Coisa rara de se ver nesse dias – os olhos dela brilhavam mais do que nunca. Eram verdadeiros ímãs.

Ele pediu licença e foi até sua mesa pegar o seu copo. Voltou, sentou bem em frente a ela, e ambos embarcaram em uma conversa que durou horas e algumas Heineken. Ambos estavam bebendo com moderação. Ele tinha a sensação de que era o que deveria ser feito. Queria manter as coisas sob controle. Ao que tudo indicava, ela também.

Havia uma empatia, uma espécie de conexão bem fora do comum entre os dois. Descobriram que tinham amigos em comum, hábitos em comum, gostos em comum, até que foram surpreendidos pelo dono do bar dizendo que estavam fechando.

Ele olhou a sua volta e se deu conta que seus amigos tinham ido embora. Aliás, todos tinham ido embora. Só ele e ela estavam no bar. Mais nenhum cliente.

– Vamos continuar a conversa em outro lugar? – ele perguntou com assertividade. A resposta dela o surpreendeu.

– Para onde você quiser! – e enquanto falava, ela mexia em seus cabelos que exalavam um perfume maravilhoso. Ela estava completamente solta e entregue aquele momento e ele também.

– Há um bar perto daqui que fecha mais tarde. Dá para a gente ir andando. Me dá o braço. Andar de salto é complicado…

– Um cavalheiro… Viu como não dava para esquecer?

De braços dados, foram caminhando pela madrugada. Seus corpos agora estavam bem próximos e não havia mais uma mesa entre eles.

Andando ao lado dela, ele se sentia bem como há tempos não se sentia. A diferença de idade entre eles era de 10 anos, mas naquele momento não fazia a menor diferença. Eram apenas um casal feliz, cheio de uma intimidade, de uma cumplicidade que havia sido construída do zero em função de algo que ele mal se lembrava.

Os braços dados e o pele com pele estavam exacerbando a libido dos dois. Era fácil perceber isso pela maneira como eles se olhavam. Uma tensão sexual gigantesca estava sendo criada aos poucos, sem pressa.

Sentaram-se no outro bar e pediram mais uma Heineken, mas dessa vez ele se sentou ao lado dela. Elogiou o seu perfume, e ela ofereceu o seu pescoço sob a alegação de que seria mais fácil sentir o cheiro naquele local. Enquanto ele ia em direção ao pescoço dela, a sua boca interrompeu o seu caminho.

Não se beijaram. Explodiram. Perderam-se nos beijos. Esqueceram do mundo. Até que ela, completamente fora de si, o empurrou, olhou bem dentro de seus olhos e disse:

– Some comigo daqui agora!

– Vou chamar um Uber…

– Não! – ela interrompeu – Eu moro perto daqui. Vamos andando!

Ele obedeceu, obviamente. Foram os 200 metros mais longos da vida dos dois. No silêncio das ruas vazias durante a noite, eles paravam de 10 em 10 passos para mais beijos, mais carícias, mais mãos perdidas, mas sempre com destino certo. A situação beirava o desespero. Nenhum dos dois fazia questão alguma de disfarçar as suas intenções.

– Eu jurava que você estavam sem sutiã, mas de calcinha…

– Sim… Eu estava… Está na bolsa agora.

“Foi por isso que ela quis ir ao banheiro antes caminhar para casa”, pensou.

E aquela situação enlouquecedora continuou até a chegada ao prédio dela. E assim também foi na portaria do prédio. No sofá da portaria. No elevador. E quando a porta da sua casa se abriu, com um só gesto ela ficou nua na sua frente. A garganta dele ficou seca. Ficou extasiado com a perfeição do que via à meia luz. Definitivamente, uma deusa. Uma beleza única, rara, divinal.

– Vem! Eu sou tua!

E assim foi. Ele foi dela e ela foi dele por incontáveis horas. Amaram-se loucamente. Os primeiros raios de sol mostraram corpos arranhados, lanhados e um cheiro incrível de sexo, felicidade e realização no ar.

– Você é uma mulher incrível – disse olhando para o rosto dela, em tom de desabafo.

– Você fez de mim uma mulher incrível – respondeu enquanto aninhava-se no peito dele.

E ficaram ali, em silêncio. Dormiram exaustos por alguns instantes. Até que ele se levantou e começou a se preparar para ir embora. Ela fez um chá e ofereceu um café para ele. Trocaram mais algumas palavras antes da despedida.

– Então… Você vai me dar o seu telefone? – ele perguntou enquanto se encaminhava para a porta.

– Já está na inbox do seu Instagram… – o seu sorriso e a maneira como ela o olhava pareciam de uma menina peralta, daquelas bem arteiras.

– Você foi meu presente de aniversário, sabia?

– Era seu aniversário hoje? Eu não sabia… – suas mãos seguravam o queixo dele com carinho, com doçura.

– Não… É nessa semana. Presente adiantado! Me dá um abraço?

E se abraçaram longamente. E na mente dele, uma música que parecia representa-la: Lady Of The Snow, do Symphony X. Ele tinha certeza que a música era sobre ela.

No caminho até sua casa, acrescentou a seu repertório de crenças que não deveria mais fazer caridade ou se posicionar diante de qualquer injustiça “apenas” porque era o que Deus esperava dele, mas porque nunca seria capaz de prever quem se inspira ou mesmo repara em suas atitudes. Fazer o bem definitivamente era algo que compensava. E ele olhou para o céu e agradeceu a Deus.

Júlia e Eu (piloto)

A primeira vez que fui à praia com a Júlia, fiquei bem tenso. Afinal de contas, ela tinha vinte e seis, gostava de malhar, e lá estava eu com aquela barriguinha de chopp. Para piorar um pouco, vi que os amigos dela, em sua grande maioria, também eram da dita geração saúde.
 
– Esse aqui é meu namorado. – disse ela.
 
E os amigos e amigas dela, um a um, vieram falar comigo. Quando dei por mim, não parecia sequer haver algum tipo de diferença de idade. Estavamos todos no mesmo barco, rindo e comendo açaí (odeio açaí!). Meus 46 anos não eram importantes ali.
 
Mas algo me consumia… Até então, não éramos namorados. Nunca havíamos conversado sobre isso. Pensei em perguntar o porquê, mas não achei necessário. Ela tinha me assumido na frente de todos os amigos. No mínimo, ela queria que eu me sentisse bem ali. Ela se importava comigo.
 
E eu a via conversando com os amigos. Ela usava um óculos bonito, estava bem bronzeada, e o vento ajudava com o movimento dos cabelos. Era como se eu estivesse hipnotizado. Não era como se: eu estava.
 
Em certo momento, ela disse que andaria com as amigas pela areia, rente ao mar. “Será que ela vai com essa bunda de fora? Lógico que vão olhar!” E ela foi com a bunda exposta ao tempo. O corpo dela chamava a atenção, mas engoli as emoções daquele instante. Como é mesmo que dizem? Eu precisava ser maduro.
 
E depois de uns 15 minutos, Júlia voltou com um milho cozido. Ofereceu-me e tal. Não aguentei.
 
– Não gostei de você andando como a bunda de fora… – disse eu olhando para o mar
– Como assim? – disse ela com ar de reprovação. Parecia que estava furiosa.
– Sei lá, eu… – ela se levantou e se afastou, deixando o milho nas minhas mãos. Naquele momento, o milho se transformou em um pepino para mim, claro.
 
Paramos de nos falar ali na praia. Ela me fitava distante. Aliás, não dava para saber ao certo. Malditos óculos escuros!
 
E o fim de tarde foi chegando… Fomos até o carro, e ela ficou parada do lado de fora, como se esperasse alguma coisa. Quando abri o vidro para perguntar o que era…
 
– Que eu saiba, é um hábito seu abrir a porta para eu entrar. – disse ela com evidente sarcasmo em sua voz.
 
Saí do carro, abri a porta, e ela me agradeceu. Júlia ligou o rádio em uma estação aleatória. Fomos mudos até a casa dela.
 
Estacionamos o carro e subimos. Ela abriu a porta, e imediatamente após entrarmos, ela me jogou contra a parede com força e me beijou profundamente.
 
– NUNCA MAIS desconfie da minha lealdade. NUNCA! NUNCA te dei motivos para isso. – disse ela com o dedo em riste, enquanto discretamente me guiava para o banheiro.
 
– Olha, eu queria dizer… – e não consegui continuar a frase. Ela me empurrou para dentro do box. Ficou nua. Ligou o chuveiro.
 
– Agora, me fode! – disse ela de maneira bem resoluta.
 
Obviamente, obedeci.

10 dias

Sangue abundante escorre do meu nariz. Não sinto dor. Meu rosto está adormecido. Minha filha, ainda por completar dois anos, está assustada. Se jogou para trás enquanto brincávamos na cama e acertou com a cabeça o meu nariz, que se partiu imediatamente.

O 911 é acionado. Chegam em 3 minutos. Um pano de prato coberto de sangue no meu rosto tenta estancar o sangramento. Os socorristas me examinam, verificam se estou vivo (dessa parte eu já sabia), e me dizem o seguinte:

“Podemos cobrar USD 1,000 para levar o senhor até o hospital ou alguém pode leva-lo. O senhor está estável. Basta assinar essa ficha dizendo que dispensou a remoção para o hospital e está tudo certo.” Assino e parto para o hospital.

Parece um hotel. De certa forma, eu estava destoando. Camisa manchada de sangue, pano de prato no rosto. Sou acolhido antes mesmo de preencher uma ficha.

– Isso sempre acontece com o senhor? – pergunta o enfermeiro da triagem.

– Sim… Sempre que minha filha me dá uma cabeçada.

Na prática, ele estava fazendo o papel dele. Era parte do script do atendimento. Vai que sou vítima de violência familiar?

Depois do X-Ray, foi constatada a fratura. O médico foi claro: “Você tem 10 dias para operar e colocar o nariz no lugar. Caso contrário, será necessário quebrar de novo para poder reposiciona-lo.”

Procurei um ENT (ear, nose and throat) Surgeon, e marcamos a cirurgia. Cheguei cedo no dia. Deram-me algum antinflamatório e disseram que aplicariam a anestesia. E nisso, chega o anestesista: “Onde estão os seus exames pré-operatórios? Não fez nenhum? Não tem problema. Assina aqui. Se morrer, a responsabilidade é sua.”

Levantei-me e fui procurar a médica. “Eu pensei que você sabia que tinham que ser feitos.” – disse ela. Certo… E eu os faria sem pedido médico e o plano cobriria tudo, não é mesmo? Além disso, sou médico e não economista… Sofrível.

Fiz todos os exames, sempre lembrando dos tais 10 dias. Até exame do coração com contraste eu fiz (um pedido completamente fora do normal para a minha idade de acordo com os padrões brasileiros). Tudo ok. Eu podia operar.

“Ih… Essa semana estou fora. Não vou poder te operar. Volto semana que vem. Não tem problema. Eu quebro seu nariz de novo e a gente resolve isso.”

Não. Desisti da cirurgia. Dane-se! Fico com o rosto do Rocky Balboa, mas ninguém vai quebrar meu nariz de novo.

Ligo para minha mãe e conto a história. Enquanto isso, aliso meu nariz de cima para baixo. Ouço um barulho, um estalo. Meu nariz se movimentou. Olho-me no espelho. O nariz estava de volta no lugar.

Moral da História: Não deixe sua filha quebrar o seu nariz mais de uma vez.

10dias

A paçoca dos sonhos

– O que foi, filha?

As mãos cruzadas na frente. Os olhos mirando o chão. Ela parou de repente, enquanto caminhávamos pela rua mais fancy de Niterói, que parecia existir apenas para esconder a pobreza, a violência e a visível ausência do estado na cidade. Última obra? Calçada de granito nesta rua! Tudo pelo social!

– Pai, nós passamos em frente a uma loja de doces… O menino pediu para a gente comprar paçoca para ele vender. Você não ouviu?

Gelei. Sim, eu tinha ouvido. Talvez por medo, descaso ou pura ignorância, decidi seguir adiante. Minha filha não. Ela ouviu, viu e sentiu o menino.

– Você quer voltar lá, filha?

E me olhando de um jeito que só ela sabe olhar, voltamos. Perguntei para o menino exatamente o que ele queria. Era de fato uma caixa de paçoca. Disse que iria vender no sinal de trânsito.

Comprei a caixa e disse para a minha filha: “Vai lá e entrega para ele!” Meio sem graça, ela foi. O menino, sem entender muito bem o que estava acontecendo, agradeceu e nos disse um sonoro “Que Deus os abençoe!”

Aquilo rasgou meu coração. Como é? Cinco anos e fazendo isso? Fui fingindo que não estava emocionado até em casa. Desabei no banheiro. Pai é forte e não chora. Todos sabem disso, não é mesmo?

No dia seguinte, fomos passear de carro. Em um determinado sinal de trânsito, havia um menino vendendo paçocas. Era ele. Não deu tempo para ele me oferecer, mas as tais lágrimas insistentes voltaram a cair. Tentei dirigir meio de lado para disfarçar, aumentei o som, mas de nada adiantou. Minha filha não entregou paçocas para ele. Ela entregou sonhos, esperança.

E enquanto eu dirigia, rebobinei o filme, voltei a cena. Revi o menino que eu conscientemente decidi ignorar. Ladrão. Viciado em drogas. Poderia fazer mal para a minha filha. E percebi que eu estava desumanizado, morto por dentro, apesar de me considerar um grande seguidor de Cristo. “Hipócrita FDP!”, pensei comigo mesmo. Que tapa na cara com soco inglês!

Quando a gente se brutaliza por qualquer motivo que seja, Deus faz questão de nos mandar um anjo. Eu sou pai de um anjo. Que privilégio! Deu até vontade de comer paçoca! Alguém mais aceita?

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Meus cachorros

– Pode encher, por favor… Do que estávamos falando mesmo?

Eu não queria falar ou ouvir mais nada. A bebida era a desculpa. Não queria ficar bêbado. Queria parecer bêbado. Era uma conversa para ser esquecida de tantas vezes que já havia se repetido.

Nada daquilo fazia sentido. A fumaça do cigarro da mesa ao lado me sufocava. O barulho dos carros ao longe. A cerveja nacional cheia de milho. Eu precisava de algum tipo de teletransporte. Precisava sumir.

– Você sempre sai pela tangente quando o assunto não agrada…

– Não é verdade e você sabe disso. Eu só estou de saco cheio de conversar sobre o mesmo assunto todas as vezes. Não dá, entende? Não dá! EU ESTOU DE SACO CHEIO!

O pessoal da mesa ao lado olhou em minha direção. Eles fumando e eu falando alto. Estávamos empatados.

– Quer saber? Vou embora. Lá em casa não tem fumaça, não tem barulho, e a cerveja é de melhor qualidade. Vai ficar?

Levantei-me e fui embora. Poucos metros adiante, pisei em um cocô de cachorro. Merda… Eu não aguento mais essa conversa sobre ter que comprar um cachorro. Cachorro é para quem tem casa! Não consigo imaginar um cachorro em um apartamento.

Na frente do meu prédio, três vira-latas dormindo. Qual a história desses carinhas, hein? Vivem como? Nasceram onde? Já tiveram casa? Estariam com fome ou com sede? Frio?

Puta que pariu… Peguei uma vasilha daquelas de sorvete com água e outra com ração. Por que eu tenho ração em casa? Minha filha me ensinou que já temos vários cachorros. Eles moram nas ruas. Para que eu preciso comprar um?

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10 meses…

Desligo o telefone perplexo. Encontrar-me depois de 10 meses? O que ainda temos para dizer um para o outro? De qualquer maneira, fiquei curioso e resolvi pagar para ver.

Ela estava mudada, diferente. Continuava bonita. O rosto tenso com um certo ar de desespero, entretanto, era algo novo. Quase não a reconheci.

– Sei que você não deve querer me ver nem pintada de ouro, mas preciso te contar o que está acontecendo comigo.

Como assim? Virei psiquiatra, psicólogo? Na dúvida, me recostei na cadeira e comecei a comer o couvert.

– Bem… Sei que nosso final foi meio estranho…

Eufemismo puro! Terminou comigo me entregando pessoalmente uma carta, mudou de casa, de telefone, em uma época em que não existia nem celular para todos e a Internet estava começando. Não foi meio estranho. Foi totalmente estranho. Eu diria até cruel.

– Depois de você, tive 2 namorados…

Para quem escreveu na tal carta que precisava ficar sozinha, no mínimo algo curioso.

– O primeiro fazia faculdade comigo. Você sabe… Eu fiquei sem Internet um tempão, e em um dia em que nós transamos, aproveitei o banho dele para ir no seu site. Vi uma poesia que escreveu que era obviamente para mim. Caí no choro. Ele me flagrou chorando em frente ao computador. Sabia que você era meu ex. Terminou comigo.

Ela realmente estava perturbada. Ainda não estava claro o porque dela estar me contando tudo aquilo, mas a pastinha com as torradas estava uma delícia!

– Depois, comecei a namorar outro cara. E aí, em um dia que ele estava me deixando em casa, você passou do outro lado da rua dividindo o guarda-chuva com aquela piranha da sua amiga! Sempre soube que vocês tinha um caso. Aquilo foi só a confirmação. Sem perceber, para ver exatamente se era você com aquela sua “amiga” (faz o sinal de aspas com as mãos), empurrei o meu namorado para trás. Ele quis entender o que estava acontecendo. Falei a verdade. Ele ficou com raiva e se afastou de mim.

Não… A minha amiga não era uma piranha. Era minha amiga mesmo. Estávamos apenas dividindo o mesmo guarda-chuva. Estávamos voltando da faculdade e estava chovendo. Qual a importância disso? Que diferença isso fazia? Eu estava perdido, mas optei por uma pizza. Ela disse que não queria comer.

– A verdade é que desde que me separei de você, minha vida parou. Eu me afastei de você porque não queria me prender a ninguém. Deu tudo errado! Está dando tudo errado! Eu não sei mais o que fazer!

A pizza estava uma delícia. Não nego que vê-la sofrer daquele jeito, se desfazendo em lágrimas, despertou um lado sádico meu que prefiro deixar adormecido.

– Entenda, Nina. Eu gostava de você. O que está me dizendo agora era tudo que eu queria ouvir há 10 meses. Agora, isso não faz o menor sentido. E não é porque estou namorando… Estou solteiro. Só que nossa história ficou no passado…

– Tem certeza? O que eu faço, então?

Pedi ao garçom para fechar a conta e fui leva-la em casa. Estava me sentindo poderoso!

– Não quer subir?

Aceitei o convite. Como era de se imaginar, transamos. Vimos um pouco de TV, e logo em seguida me preparei para ir embora.

– Seu telefone continua o mesmo? Posso te ligar amanhã?

– Me ligar? Eu fiz isso com você para que sinta o que eu senti. Não quero mais falar com você. Não quero mais te ver. Nossa história acabou há 10 meses!

E no meio de um choro compulsivo e de pedidos para reconsiderar minha decisão, fui embora quase que sorrindo.

Eu odeio esse meu lado sádico.

contos-de-fadas-tricae

Ok, eu conto

Se em todo sonho a alma se liberta

E em todo sonho eu te reencontro

Só estou realmente livre

Quando vou a seu encontro

E quando acordo, paciência…

Simplesmente me desencontro

Era só isso

Pronto.

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