“Gostei muito dessa sua frase: ‘Eu sou o único responsável pela minha felicidade’. Vamos terminar a sessão por aqui. Nos vemos na próxima semana.”
Uma boa sessão de análise termina geralmente assim: você dizendo para si mesmo algo que você já sabia, mas não conseguia ver ou sentir. Foi assim que terminou aquela sessão.
Confesso que fiquei incomodado. Era uma responsabilidade e tanto. “Como assim eu sou responsável pela minha felicidade? Eu sou casado, tenho uma filha linda, tenho um excelente emprego, vivo rodeado de amigos, viajo para todos os lados e a responsabilidade é minha? Eu sou feliz porque tenho toda essa gama de coisas a minha volta. Caso contrário, não seria.”
Quem fez terapia sabe que quando surge um “momento de verdade” na sua sessão, partindo do pressuposto que a sua terapia seja feita de maneira sincera e honesta, e com o objetivo de aumentar o seu nível de consciência e conhecimento sobre si mesmo, sabe muito bem que os “momentos de mentira”, do nosso nível de consciência anterior, são simplesmente rechaçados pelo nosso “novo eu”. E assim foi. Assim passou a ser.
O meu “perguntador interior”, que eu tentava calar de todas as formas possíveis, não me deixava quieto. Eu estava sendo incomodado por mim mesmo! E em estado de negação, tentava de todas as maneiras não assumir a responsabilidade que eu tinha sobre a minha felicidade, e, acima de tudo, sobre a minha existência. E quando finalmente eu resolvi aceitar a força e o poder do que eu havia descoberto, surgiu um “efeito cascata” que me fez questionar se eu era de fato, nesse novo nível de consciência, feliz.
Lembrei das viagens que fiz, de vários jantares, festas, mas me lembrei também do vazio que me acompanhava nessas ocasiões. Sim, eu mentia para mim mesmo. As fotos eram lindas, mas dentro de mim um vazio que eu não sabia explicar. Eu sequer me reconhecia nas fotos que via. Não era eu ali. Era o tal “eu anterior”: plasticamente bonito, socialmente integrado e… Infeliz. Nas fotos, independentemente do sorriso estampado o meu rosto, a realidade era funesta. Eu estava de luto e não havia nada exterior a mim que fosse capaz de mudar isso.
Mas afinal de contas, o que me faltava? Eu tinha tudo! Havia pessoas me invejando! “O que me faltava? O que me faltava?” E essa pergunta ecoava em minha mente, e nem mesmo as sessões de análise pareciam ajudar.
Até que, um dia, eu resolvi olhar de perto tudo que eu tinha. Olhar com uma lupa, digamos assim. Não para julgar, mas para observar o que de fato esse “novo eu” via. E fiquei assustado quando descobri que me faltava a coisa mais importante de todas: sinceridade para comigo mesmo e, em decorrência, sinceridade para com os outros.
E essa sinceridade para comigo mesmo mudou a minha vida. E esse meu “novo eu”, esse meu “novo nível de consciência elevada”, começou a se mostrar implacável. De mansinho, mostrou que toda a parte material não era suficiente para sustentar a minha felicidade. Era importante, claro, mas descobri que esse não era o “motor” da minha vida. Olhei para minha filha, tão amada e tão querida, e me dei conta de que ela era o maior tesouro do mundo. Olhei para minha meus amigos, poucos e fiéis, e percebi a importância deles no meu presente, passado e futuro. E olhei para o meu casamento… E foi aí que comecei a perceber que havia algo de errado.
Minha então esposa (hoje, ex-esposa), mãe da minha filha, comigo há mais de 15 anos e presente em todos os momentos de minha vida desde que nos casamos, não significava mais para mim o que deveria significar uma esposa. Ela tinha virado uma amiga e eu ainda a amava nesse nível, a amava como mãe da minha filha, a amava pelos momentos bons que passamos juntos (pelos ruins também), pelo que construímos, pelo que conquistamos, mas não a amava pelo motivo primordial para se manter um casamento: eu não mais a amava como mulher.
Isso foi um choque terrível! Eu venho de uma família muito católica, tradicionalista, e justamente por isso é que NUNCA havia passado pela minha cabeça que um sacramento como o matrimônio pudesse ser questionado. Mas a vida é assim… E foi assim que esse “novo eu” percebeu as coisas. Afinal de contas, a questão era a minha vida e não a vida dos outros. Não seriam os outros que teriam que arcar com as consequências das minhas decisões.
De início, relutei. Achei que era culpa minha. “Besteira da minha cabeça!” ou “Esse negócio de análise não está com nada!”, mas fato é que eu sequer conseguia chegar perto daquela pessoa tão especial com quem me casei um dia.
Conversei sobre este assunto com minha então esposa exaustivamente. Eu a ouvi e ela me ouviu. Foram várias e mais várias sessões de conversas sobre o nosso casamento durante semanas, meses, e cada vez mais eu percebia o distanciamento que havia sido criado entre nós dois. Parecia que ela falava em um idioma e eu em outro. Tentamos reacender a chama, digamos assim, mas não havia mais aquela coisa de “pele com pele”. Não havia o que reacender. Os sonhos se tornaram díspares. As expectativas com relação ao futuro eram nebulosas, ou melhor… Não havia expectativas! Era só “deixar rolar”. Eu simplesmente não conseguia me imaginar compartilhando o resto de minha vida com ela. Entre o homem e a mulher, entre o casal, não havia mais nada em comum, com exceção de nossa filha e das nossas “máscaras sociais”.
Fui procurar um psiquiatra. “Doutor, estou com depressão.” Isso depois de quase 2 horas de consulta. E ele me disse: “Não creio que seja depressão. Parece-me muito mais um caso de ansiedade represada por conta de mudanças que você precisa fazer em sua vida e não faz.”
Saí do consultório revoltado! Fui pedir ajuda e é isso que recebo em troca? Até que me dei conta que ele estava falando a mesma coisa que eu estava vivendo em função de minhas conversas na terapia. E isso me levou de volta para o meu “novo eu”: era preciso, mais do que nunca, sair do estado de negação.
Procurei os amigos mais antigos, os que mais conheciam a minha vida e a minha trajetória. Procurei a família, passando pela mãe, pela tia, pelos primos… E me senti no “Show do Milhão”, pedindo ajuda ao auditório ou aos universitários. Cada um falava de acordo com suas próprias experiências de vida. Poucos me escutavam de verdade. Já havia uma opinião formada ANTES MESMO de eu explicar o que estava acontecendo*. Cheguei a ouvir coisas do tipo “Veja como ficou a sua tia depois da separação!” ou “Cara, separa e fica com uma novinha… Menos trabalho e mais diversão.” Absurdos descabidos e desconexos com a minha vida, com a minha realidade, com os meus valores.
*Há “coisas” que tive até vergonha de contar, e depois me dei conta de que o simples fato de eu ter vergonha de contar essas “coisas” já era um indicativo CLARO e OBJETIVO do quanto essas “coisas” me faziam mal.
Foi muito difícil. “Vou destruir uma família!”, pensava eu. “Como a minha esposa vai se virar? E a minha filha? Meu Deus! Minha filha! O que ela vai pensar? O que os coleguinhas dela vão pensar? Será que vou afetar o rendimento dela no colégio? O que os pais das outras crianças vão pensar de mim? Eu sou um MONSTRO!”
E isso me torturava… Consumia-me ao ponto de me prostrar. Eu levava a vida em “piloto automático”, só que eu não sabia nem qual era o destino! Até que me dei conta que o único e inexorável destino seria a minha morte física… Até porque a minha alma, e foi duro reconhecer isso, já estava morta. Eu havia me tornado um zumbi, fazedor da vontade de tudo e de todos, menos das minhas.
“Gostei muito dessa sua frase: ‘Eu sou o único responsável pela minha felicidade’. Vamos terminar a sessão por aqui. Nos vemos na próxima semana.”
“Mas eu sou o super homem!”, eu dizia para mim mesmo. Resolvi aceitar os fatos e manter as aparências. Seria o melhor para todo mundo. Para que minha filha, minha então esposa, minha mãe, meu pai (in memorian), meus cachorros, o pessoal do trabalho, do colégio, da igreja, meus vizinhos, e até para o pessoal do restaurante onde almoçávamos no domingo. Talvez fosse melhor até para Deus. Afinal de contas, casamento é um sacramento, não é mesmo?
E os dias se arrastavam. A ansiedade virou depressão de fato. Eu me punia TODOS OS DIAS vivendo uma realidade que não era minha e achando que estava ajudando todos que estavam a minha volta. Eu já era um zumbi, mas tinha chegado ao fundo do poço e parecia querer continuar cavando.
Eu rezava, orava… Conversava com a minha amada mãezinha Nossa Senhora de Fátima, com Jesus Cristo, com Deus, e pedia ajuda. “Pessoal aí de cima, por favor, me ajude! Eu não sei o que fazer!” Eu rezei de joelhos. Eu precisava de salvação. Eu estava completamente perdido e entreguei TUDO nas mãos de Deus! TUDO! Abri meu peito e entreguei meu coração nas mãos de Nossa Senhora de Fátima e disse: “Eu não sei vencer essa batalha sozinho! Meu coração, minha vida está em tuas mãos! Ajuda-me!”
E então, timidamente, meu instinto de sobrevivência começou a me mandar recados. Eu não vou entrar em detalhes aqui para não personalizar demais a história, mas começou a ficar claro e evidente que nem mesmo Deus e muito menos a Virgem Maria esperavam de mim o que eu havia me proposto: autodestruição, autossabotagem. Nossa Senhora de Fátima, então… Só faltou aparecer na minha frente para me dizer o que deveria ser feito*.
*Ela realmente me mostrou o caminho a seguir de maneira inegável. Fenômenos da fé, digamos assim.
Percebi que era chegada a hora de mudar. Obviamente, minha primeira preocupação foi com a minha filha. Ela tinha 8 anos. E um dia, quando ela me viu cabisbaixo, com uma sensibilidade angelical, me segurou pelo queixo, levantou a minha cabeça, e me perguntou olhando em meus olhos (emociono-me ao lembrar disso): “Papai, por que você está assim?” E eu desabei… Eu estava mostrando para ela exatamente como uma pessoa não deve ser: covarde. Eu estava passando adiante a ideia de que ser medíocre é o suficiente. E sem eu dizer uma palavra, ainda que aos prantos, ela terminou a nossa conversa dizendo o seguinte: “Vou na casa da [nome omitido propositalmente]. Quer dizer… Vou na casa da mãe dela, porque ela tem duas casas. Os pais dela são separados. Ela tem dois quartos!” E saiu correndo, sorrindo…
E então, nesse dia, me dei conta que a minha mentira já tinha ido longe demais. Era chegada a hora de fazer algo. A minha filha não sabia da separação, mas as crianças não são bobas… Ela sentia que havia algo errado naquela casa, naquela família, e que a incomodava em um nível inconsciente. Ela percebia a energia, a troca de palavras ou a ausência de troca… A distância entre todos mesmo estando todos sob um mesmo teto. Um pacto velado de infelicidade.
Coloquei a minha filha em uma psicóloga. Pedi a minha então esposa para fazer análise. Li muito sobre como fazer o que precisava ser feito de maneira a causar o menor dano possível na vida da minha filha. Ela era a minha maior preocupação (e mais tarde descobri que também a usei como desculpa durante certo tempo para nada fazer). E para minha surpresa, autores renomados nacionais e internacionais, a minha analista, a analista da minha então esposa e até a psicóloga de minha filha foram unânimes: o pior que pode ser feito é jogar a sujeira para baixo do tapete, pois vocês (pais) são MODELOS para a vida de sua filha. E a pergunta derradeira foi: “Se a sua filha estivesse nessa situação no futuro, casada e infeliz, vocês se preocupariam com a felicidade dela ou em manter as aparências de algo que já não existe? Quem está se beneficiando de todo esse sofrimento pelo qual vocês estão passando?”
Não foi fácil a separação, mas foi a atitude mais corajosa que já tomei na vida. Hoje, meu sorriso é largo e o de minha ex-esposa também. Ela também se deu conta na terapia que tinha força, dignidade e brio suficientes para seguir a vida sem mim. Aliás, antes do nosso divórcio consensual, ela estava até um pouco relutante, mas depois que nos separamos, ela olhou nos meus olhos e disse: “Obrigado por ter tido a coragem e a sinceridade de dar uma chance a todos nós de sermos felizes novamente. Eu não mereço que alguém fique comigo por nenhum sentimento que não seja amor.” E estamos seguindo as nossas histórias, na certeza de que fizemos por nós e pela nossa filha o melhor e o mais honesto que poderia ser feito. Viver na mentira? Nunca mais.
Minha filha? Mora comigo e com minha ex-esposa, em locais muito próximos. Quando o pai fica chato, ela vai para a casa da mãe. Quando a mãe fica chata, ela vai para a casa do pai. Quando pai quer sair à noite ou viajar, ela dorme na casa da mãe. Quando a mãe quer sair à noite ou viajar, ela dorme na casa do pai. Há rotina para ir para o colégio, para voltar do colégio, para almoçar. Há roupa limpa, lavada, cheirosa… Há uma overdose de amor no entorno dela que a deixou viciada! A minha filha NUNCA esteve tão feliz, e nós, enquanto pais, nunca estivemos tão presentes na vida dela. E pensar que foi nela que encontrei a solução para as nossas vidas…
Essa é uma história real. Aconteceu comigo. Não sou coach da nada, mas percebi que há muitos dogmas e muitas opiniões circulando por aí que não fazem o menor sentido. Muitos dão opiniões que nada mais são do que projeções das suas próprias experiências individuais, carecendo de contexto ou sentido. A vida é para ser vivida. E sim, eu sou o único responsável pela minha felicidade e fui muito soberbo, diria até arrogante, ao achar que, sem mim, não haveria possibilidade de felicidade tanto na vida da minha ex-esposa como na da minha filha.
E para terminar, um amigo de longa data, certa feita, me perguntou: “Poxa… Não deu certo o casamento de vocês… Que pena!” E a minha resposta foi lacônica: “Como dizer que não deu certo algo que durou pelo menos 15 anos?”
E para terminar, um vídeo que me ajudou muito. Antes da separação, me vi em muitas das situações citadas, vivendo em negação e inventando desculpas.
