Lucifer é uma série que fala sobre Lucifer (óbvio), mas como se ele fosse um humano vivendo entre nós. Não se enganem: ele continua sendo Lucifer, com todos os seus poderes, só que vivendo situações e sentimentos que humanos normais experimentam, tais como amor, culpa, raiva, saudade, etc. A cereja do bola é que a série foca muito em psicoterapia, ou seja, em como lidar com essas situações e sentimentos, o que a faz ficar ainda mais interessante. Inclusive, uma das principais personagens da série é uma psicóloga.
DISCLAIMER: Eu vou soltar alguns spoilers por aqui. Esteja ciente disso.
Eu gostei muito da série e gostei especialmente do final. Nela, Lucifer não é descrito como o mal em si, mas sim como aquele que recebeu um trabalho de Deus (sim, até Deus aparece na série), que é o de punir quem fez o mal. Qual a punição para as pessoas que vão parar no inferno? Viver eternamente o que é descrito como um “hell loop”, ou seja, a danação eterna de reviver e sentir o que fez a pessoa ir parar no inferno. O que as faz permanecer no dito “hell loop”? Culpa. Na prática, é como se não fosse Lucifer quem mantivesse as pessoas no inferno. Elas ficam por lá por conta da sua própria culpa e da sua própria incapacidade de lidar com o que fizeram. É um conceito interessante e é justamente aí que entra a questão da psicoterapia. Lucifer, inclusive, faz terapia!
Ao final da série, Lucifer transforma o inferno em um grande consultório psicoterápico, cujo objetivo é livrar as pessoas das suas culpas e fazê-las assumir as responsabilidades diante de seus próprios erros, tornando-as melhores. E assim procedendo, a série dá a entender que qualquer um poderia ir para o paraíso. Portanto, na série Lucifer se transforma em um anjo (bem… anjo ele já era – anjo caído) cuja missão é não mais apenas punir, mas resgatar todos os que estiverem verdadeiramente dispostos a ir para o paraíso.
Como eu disse, realmente é um conceito muito interessante, mas a vida me mostrou que há gente que nunca vai assumir a responsabilidade por seus atos. São sempre vítimas. Vítimas da inveja dos amigos, da incompreensão do companheiro, dos pais, dos chefes, dos filhos… Enfim, vítimas profissionais que acreditam que o universo inteiro conspira contra elas. Acreditam que são criaturas absolutamente perfeitas e divinais, grandiosas, merecedoras de todos os direitos e livres de todas as obrigações, e que eventualmente agem de forma maldosa ou violenta apenas com o objetivo de se protegerem do verdadeiro mal que a elas sempre tentam infligir. A Psicologia e a Psiquiatria conhecem bem de perto esses casos e o prognóstico não costuma ser bom.
Uma pessoa com uma mente assim não pensa ou sente como uma pessoa normal. É capaz de fazer terapia e criar uma persona* para ser analisada. Enfim… É uma pessoa capaz até de enganar os profissionais da área menos experientes ou que não tenham lidado de perto com manipuladores e mentirosos compulsivos. Vivem e são guiadas por um falso self**.
Obviamente, este texto não é uma resenha. A série tem seus altos e baixos (muito mais altos do que baixos). Eu gostei muito, muito mesmo. A solução proposta pela série, entretanto, na minha opinião, ainda vai deixar o inferno cheio de gente. Apesar de para Deus nada ser impossível, para mudar, antes de mais nada é preciso que a própria pessoa reconheça que há algo de errado, sendo que há pessoas que simplesmente não se enxergam.
P.S.: Tom Ellis é absolutamente brilhante no papel de Lucifer. Só a performance dele já vale assistir à série.
* Na psicologia analítica de Jung, (persona) é “uma espécie de máscara projetada, por um lado, para fazer uma impressão definitiva sobre os outros, e por outro, dissimular a verdadeira natureza do indivíduo”, a face social que o indivíduo apresenta ao mundo. – Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Persona_(psicologia)
** Verdadeiro self (também conhecido como self real, self autêntico , self original e vulnerável self ) e falso self (também conhecido como, self idealizado, self superficial e pseudo self ) são conceitos psicológicos, originalmente introduzidos na psicanálise em 1960 por Donald Winnicott . Winnicott usou o verdadeiro self para descrever um senso de si baseado na experiência espontânea autêntica e na sensação de estar vivo, tendo um self real. O falso self, por outro lado, Winnicott via como uma fachada defensiva, que, em casos extremos, poderia deixar seus detentores sem espontaneidade e se sentindo mortos e vazios, atrás de uma mera aparência de ser real. – Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Verdadeiro_self_e_falso_self
Quando eu era mais novo, por ser muito racional e por todo um histórico familiar que prefiro deixar de fora nesse momento, eu acreditava que a única maneira de ser feliz era controlando tudo. Obviamente, eu não tinha consciência disso, e usava termos alternativos para definir o tal controle. No caso de namoradas, ciúmes. No caso do colégio, perfeccionismo (notas sempre muito altas). E por aí vai…
Acontece que é simplesmente impossível controlar tudo. Não dá! Desde quando é saudável marcar em cima da namorada 24 horas por dia? Desde quando é saudável estudar não pela nota máxima, mas apenas para ter a nota máxima e usá-la como ferramenta de manipulação? “Sabe como é, coordenador… Sou o melhor aluno.”
Na prática, como não é possível controlar tudo, acabamos por criar mecanismos de manipulação dos mais variados tipos. Lidamos com os outros e ao mesmo tempo tentamos anulá-los, de forma que seja inequívoco o poder que exercemos sobre estes. O objetivo é ter e estar SEMPRE no controle.
Bem… Como vocês podem imaginar, a vida acaba ensinando que isso simplesmente não funciona. Pode funcionar no curto prazo, mas com as pessoas ficando mais maduras e espertas, o mundo da manipulação acaba ruindo. Só que você (eu, no caso) é o último a se dar conta disso, e acaba investindo de forma mais pesada ainda em maneiras de controlar o que por natureza é incontrolável: a vida.
O resultado disso? Cansaço, ansiedade, depressão… Uma sensação de impotência incrível que, por bem ou por mal, acaba tirando você (eu) da ilusão de que você é o “Master of Puppets” (sim, referência ao Metallica) e que todos são suas marionetes, cuja única finalidade existencial é satisfazer as suas (minhas) vontades. Cai por terra a ilusão de que outros são objetos secundários, passivos, sem sentimentos, etc.
E aí, dependendo das suas crenças, você acaba procurando caminhos para tentar resolver isso. Livros de autoajuda, psicoterapia, tratamento psiquiátrico, etc. Considero todos estes meios válidos, e acredito que todos podem contribuir de alguma forma. Entretanto, o formalismo da Psicanálise e da Psiquiatria levam vantagem sobre os demais, creio eu. Você não quer cair nas mãos de alguém que escreva um livro dizendo que a única saída para os seus problems é o suicídio, não é mesmo?
E depois de um tempo, você percebe que durante uma vida inteira levou sobre os ombros um peso gigantesco que não precisava levar. A tentativa vã de controle sobre tudo e todos requeria um imenso esforço, ainda que parecesse algo natural, parte da sua vida. E percebe que o que precisa acontecer, de fato acontece. A mulher que tem que ficar na sua vida, fica. Os amigos, idem. Tudo! As tentativas de controle são sumariamente ignoradas pela vida, pelo universo, e apesar do medo que isso possa gerar, não dá para negar as emoções atreladas a essa imprevisibilidade.
A vida como eu a conhecia mudou depois que me dei conta disso. Sofri e sofro quando tenho que sofrer. Sorri e sorrio quando tenho que sorrir. Eu vivo. Eu não controlo. Eu mato no peito o que tiver que vir. E com essa simples mudança, percebi que a vida tinha muito mais para me dar do que eu achava que tinha. É a famosa Lei do Retorno: eu deixo a vida me levar, e a vida me leva (Zeca Pagodinho que o diga). Onde vou parar? Não faço a menor idéia! Entretanto, depois de tomar tanta porrada da vida, descobri que essa é a ÚNICA maneira de viver. Se a vida é infinita em suas possibilidades, é para isso que estou aqui.