O bem aquece a vida

No Centro de Niterói/RJ, durante a década de 1970, meu avô saía de casa aflito todas as vezes que chovia e ventava muito forte. Ele saía com uma caixa de papelão nas mãos, e um dia me chamou para ir com ele (para o desespero da minha mãe, pois eu era muito novo).

Fomos em direção à casa que abrigava a prefeitura na época, que era completamente cercada por árvores enormes. Diante delas, vi meu avô se abaixando e recolhendo o que pareciam ser pequenos frutos das árvores. Não eram. Eram pequenos pardais desfalecidos por conta da tempestade.

Então, já com a caixa cheia dos pequenos pássaros, meu avô voltou para casa, cobriu a caixa com um cobertor e a colocou no forno, em temperatura bem baixa e com a porta aberta. Instantes depois, meu avô retirou a caixa do forno e eu comecei a ouvir inúmeros e intensos piados. Quando a chuva passou, meu avô retirou o cobertor de cima da caixa, bem perto da janela da cozinha, e dezenas de passarinhos fortes e aquecidos, voaram pela janela em direção ao infinito, em direção à vida.

Aprendi ali com meu avô, bem cedo, que mesmo sem que um pardal lembrasse do meu avô ou se mostrasse minimamente grato a ele, o prazer de ver os pardais voltarem a voar significava para ele absolutamente tudo. Ele praticava o bem e o bem era a sua própria recompensa. Era evidente nos seus olhos e no sorriso que esbanjava para si mesmo.

Que nossos corações e nossas atitudes sejam como a caixa, o cobertor e o forno do meu avô. E que possamos fazer o bem sem esperar nada de ninguém, na certeza de que ver o outro se levantar diante de uma dificuldade é um dos mais sublimes experiências que podemos ter na vida.

Saudades de ti, Afonso Fonseca, meu adorável e inesquecível avô. Obrigado por ter me ensinado tantas e tantas vezes o que verdadeiramente vale a pena na vida.

Atormenta

Repousa teus lábios nos lábios meus

E me deixa ver teu infinito.

Mostra os mares que são só teus

E as profundezas que eu agito.

Confessa os desejos que não são só meus

E admita que são infinitos.

Recebe teus mares com os mares meus:

Cala a minha boca, sente meus gritos.

Até você

Você sussurrava
Em meus ouvidos
Feito vento leve
Feito brisa do mar…

Nunca se deu conta
Dos furacões
E tempestades
Dos maremotos
Dos rochedos
Dos raios
Dos trovões
Que causava
Bem dentro de mim

Cada palavra era um grito –
Um uivo aflito –
E eu ando meio surdo
De não mais lhe ouvir

Eu era nau
Sem rumo
E todos os rumos –
O desconhecido! –
Levavam-me
De volta
Até você.

Não vou passar

A tempestade vai passar

 

Eu não

 

Não sou passageiro

Não sou

E não vim

De passagem

 

Sou atemporal

O infinito

No infinitivo

 

E ante o rugido

E o clarão dos trovões

Dou passagem

 

E é nesse ponto que a vida se engana:

Quando acredita que me conjuga.

Deliberadamente

Sou um náufrago

Tu és meu mar

Estou a tua inteira mercê

Que tudo decidas para onde me levar

 

Seja longe ou perto

O destino já é incerto

Sobreviver já seria muito

Viver, então, algo fortuito

 

Não me resta mais nem esperança

Esta é sempre  a primeira que morre

Peço que sejas amável, porém

Enquanto sangue dentro de mim ainda corre

 

Mas estarei feliz

Se dessa vida eu me for

Partirei deliberadamente afogado

Inundado pelo teu amor.

mulher nua chuva

Sincronicidade

Eu estive nas entranhas do seu corpo

Quis o destino que nossos sonhos

De carne e osso

Se materializassem

E criassem esse grande colosso

 

Do que falo?

Repare no seu corpo enquanto falo

Repare no meu corpo enquanto falo

Não é controlável

Não é domável

É selvageria de dar gosto

 

Como é quando se lembra de mim

E não estou por perto?

Eu sei… Parece loucura

Mas essa sincronicidade

Sem limites

É brutalmente real

Como dentro, assim fora

Assim aflora

Ora lógica difusa

Ora lógica nítida

Ora réu que a todos acusa

 

No lugar de nossos arquétipos

Desejos e sonhos reais

Manifestação de seres racionais

Que descobriram que o descoberto

Não era suficiente, pelo contrário

Os deixava inquietos, boquiabertos

Deliciosamente incertos

Na busca do que transcende ao eu

E os sublima em nós

Quando estamos a sós

Diante de nós mesmos

 

Quem é o comandante desta nau?

Entenda… Não há comando

Esse é o desafio

Estamos à mercê do vento

Eufemismo dos nossos pensamentos

Que se revelam em segredo

Quer seja no início do dia

Quer seja no meio da noite

Sabemos como desenrola-se tal enredo

 

Inapropriadamente perfeitos

Inadvertidamente direitos

Pura e perfeita confissão

Somos tempestade, raio e trovão

Desejo, amor e paixão

Existimos somente na nossa sanidade

Que faz questão absoluta de emergir

Para nos mostrar que nunca

Absolutamente nunca

É tarde para existir.

sincronicidade

Bonança?

Depois da tempestade

A bonança…

E isso não necessariamente

É motivo de comemoração:

Pode ser apenas

O olho do furacão.*

*Região central de uma forte tempestade tropical, na qual, no entanto, persiste tempo calmo, podendo-se mesmo avistar céu limpo; como figura de linguagem, deve designar um ponto de calma e tranquilidade em meio à confusão, à pressa ou tensão ; contudo, a expressão é frequentemente utilizada, de forma errônea, com sentido inverso; (exemplo de uso incorreto: “o soldado em combate vive no olho do furacão”)

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Enfrentei este da foto, o Ike, em 2008, enquanto morava no Texas.